Assim Como os Vira Latas

Domingo, dezoito horas; chegou o momento de sair de casa e ir ganhar o meu pão a cento e trinta quilômetros de distância. Vou até a cozinha, entro debaixo da mesa, acaricio e abraço meus três vira latas — Miúda, Nina e Tição. Digo baixinho para eles que em cinco dias estarei de volta, mas não adianta, eles ficam lá tristes por mais de doze horas; os cães não pensam e imaginam, simplesmente sentem e vivem  assim como os meninos.

Na porta da sala despeço-me de minha mulher, que fica triste também, e me diz: "Passa rápido, sexta-feira está logo ali". Já foi um pouco pior: Quando meus filhos eram meninos e moravam lá em casa, era ainda mais duro aquele adeus, era mesmo difícil olhar para trás, muito difícil... Ainda é difícil olhar agora. Desço rua abaixo em direção ao ponto de ônibus, e ainda escuto: "Boa semana meu bem, boa semana...".

Domingo, dezesseis horas, cinquenta anos atrás... chegou o momento de meu pai partir no seu caminhão, e ir ganhar o seu pão, levando sua carga a mil e quinhentos quilômetros de casa. No portão, minha mãe eu e meus irmãos, todos ali para o adeus final... "Boa viagem meu bem", diz mamãe, "vai com Deus papai", diz cada um de seus filhos; o caminhoneiro entra na carreta, acelera lentamente, e aos poucos vai descendo a rua; instantes depois, o caminhão vermelho é apenas uma lembrança na memória de cada um.

Mamãe, calada e resignada, volta para sua máquina de costura, ou para suas rosas e antúrios; meus irmãos vão, também calados, cuidarem de seus deveres, seus afazeres, suas saudades, suas vidas, enfim — cada um no seu canto chora o seu tanto.

Vou mansamente para a casinha do Camborde — o vira lata de meu pai —, a casa é pequena mas cabem dois lá dentro; abraço o cachorro, faço carícias nele e choro intensamente pela saudade que já começou, antes mesmo da primeira grande curva da estrada distante, que leva o meu pai para tão longe, antes mesmo daquelas quase infinitas retas que levam a Salvador.

Camborde, apesar de sua profunda tristeza, lambe minhas mãos e meus pés, abana o rabo e olha para mim como a tentar dizer-me: "Em dez dias ele está de volta"; mas não adianta, eu fico triste por mais de doze horas; os meninos não pensam e imaginam, simplesmente sentem e vivem — assim como os vira latas. 



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Agricultor e a Poetisa Ferida

O Marido, a Mulher, o Rio e a Calça

A Finitude das Redes e a Infinitude do Mar