O Camundongo Dongo e a Gata Normalista

Era uma vez um camundongo chamado Dongo, que morava em uma casa onde havia uma Gata Normalista. Dongo sempre estudava nos velhos livros que já haviam passado pelas mãos de seus irmãos. No antigo tempo em que Dongo cresceu, os livros escolares não perdiam o prazo de validade. 

Dongo, mesmo sem o perceber, era inteligente, mas não gostava muito de estudar, por ter uma grande dificuldade de concentração — sua mente estava sempre longe da realidade.

Depois de alguns anos estudando aqueles livros surrados e amados — agora ele sabe —, Dongo descobriu que teria que mudar de escola; estava terminando o primário e teria que fazer um exame de admissão para o ginásio.

A prova de admissão não era fácil; era necessário estudar muito para passar, e aquela ideia não agradava muito a Dongo — para ele era uma tarefa quase impossível, além de tudo era tempo de verão, tempo de férias, bolinha de gude, mangas no pé, jogos de futebol, pique, etc.

Mas a Grande Gata mãe tinha outros planos para Dongo; a irmã normalista de Dongo tinha a fama de ter aprovado, até então, todos os alunos que passaram pelo seu intensivo de verão para o exame de admissão — campo de concentração para meninos. Dongo então, foi entregue aos cuidados da Gata Normalista para estudar para as provas.

Adeus verão, adeus jogos de futebol, adeus mangas no pé, adeus pique bandeira, adeus liberdade, adeus tudo aquilo que Dongo queria fazer, adeus férias de dezembro e janeiro...

Ao longo de eternos dois meses a peste da Gata Normalista vigiou cada passo do camundongo Dongo, fazendo-o estudar a cada minuto, com chuva, com sol, com vento, com neve, com raio, com trovão, com furacão... Dongo estudava no café, Dongo estudava no almoço, Dongo estudava no banho, Dongo estudava no jantar, Dongo estudava em qualquer lugar, obviamente, com a constante vigilância da Gata Normalista. Como a escolinha da Gata Normalista  a filial do inferno na terra —, ficava na própria casa do camundongo Dongo, ele era sempre o primeiro a chegar — na verdade nunca saia da escola —, e sempre o último a sair.

Dongo queria matar aquela Gata Normalista saída das páginas de Dante Alighieri  aquele feito seria algo grandioso para toda a humanidade —, que não dava a ele nenhuma trégua — mais parecia um carcereiro de campo de concentração da segunda grande guerra —, e de segunda a segunda, com 7 minutos de folga por dia, Dongo estudava até a exaustão todos aqueles livros antigos com os outros gatos prisioneiros da carcereira Gata Normalista — eles estavam no regime semiaberto, e Dongo, coitadinho do Dongo,  era um recluso em tempo integral.

Depois de dois meses de intensos sofrimentos e estudos, vieram finalmente as provas; havia um grande, moderno e bonito ginásio municipal, que era o sonho de todos os meninos da cidade — uma verdadeira beleza da arquitetura, algo muito além do grupo escolar da periferia. Naquele ginásio no alto do morro, estudavam os melhores alunos da cidade — pobres, ricos, brancos, pretos... —, desde que passassem no disputadíssimo exame de admissão.

Dongo fez a prova, e como todos os alunos da Gata Normalista, conseguiu ser aprovado. Aquela Gata Normalista havia conseguido novamente, e provavelmente, sem nunca o saber, realizou a maior proeza de sua vida, ao conseguir, através de sua disciplina e necessária severidade, colocar em uma escola por excelência o camundongo Dongo, que naquela época já sofria do distúrbio do déficit de atenção, sentindo em si uma enorme dificuldade de estar totalmente ligado à realidade e ao momento presente.

Enorme, quase infinita foi a alegria do camundongo Dongo ao ler o seu nome na lista dos aprovados; aquele foi um dos dias mais gloriosos de toda a sua vida.

O Camundongo Dongo sofria de codependência — distúrbio do déficit de atenção pode ser um de seus sintomas —, uma doença de gente, e não de camundongo, cujo nascimento e desenvolvimento principia na infância. Em seu estado de codependência, no olhar de Dongo para o mundo exterior, existiam somente gatos — todos eram gatos — e ele, olhando para si mesmo, observava tão somente um camundongo, o mais incomum dos camundongos, o camundongo Dongo.

Somente cinquenta anos depois, ao recordar tudo aquilo com sentimento de profundo amor, Dongo finalmente sentiu a necessidade de expressar o seu mais profundo sentimento de gratidão — muitos codependentes possuem uma certa dificuldade em expressar suas emoções. Então, Dongo finalmente escreveu e enviou para a adorável e abençoada Gata Normalista uma crônica que começava mais ou menos assim:

"Era uma vez um camundongo chamado Dongo, que morava em uma casa onde havia uma Gata Normalista. Dongo sempre estudava nos velhos livros que já haviam passado pelas mãos de seus irmãos...." 

Comentários

  1. Bendita disciplina, bendito amor exigente que você encontrou na sua família. Sua sensibilidade de poeta precisava de realidade, já que sua mente gostava de fugir pelo devaneio da vida real!
    Linda homenagem de gratidão ao trabalho cada vez mais difícil de ensinar o conteúdo das matérias, que são patrimônio cultural da humanidade. Porém, poucos ainda tem acesso de qualidade!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A Gata Normalista também leu; a gratidão finalmente atingiu o seu alvo 50 anos depois. Que bela e perfumada é esta flor, a flor da gratidão.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O Agricultor e a Poetisa Ferida

O Marido, a Mulher, o Rio e a Calça

A Finitude das Redes e a Infinitude do Mar