Dongo e o Gato Simpático

Era uma vez um camundongo chamado Dongo, que em um dia de verão estava em uma longa fila, uma fila quase sem fim, aguardando a sua vez de comprar a carne. Naquela época havia uma crise, e de vez em quando alguns produtos sumiam dos mercados

Dongo já estava naquela fila há horas, havia chegado bem cedo, mas muitos outros haviam chegado mais cedo ainda. Depois de mais ou menos umas três horas o camundongo Dongo, apesar do cansaço, foi sentindo uma certa alegria, pois, com o andar da fila, já conseguia observar lá na frente o objeto de sua missão, a tão desejada carne.

Suas pernas doíam; ele já não aguentava mais ficar na fila, "Deus é grande", pensou Dongo, e finalmente lá pelas onze horas da manhã havia chegado a sua vez. Olhou uma última vez para trás e aquela fila perdia-se naquele imenso corredor, era impossível descobrir quem era o último, "coitado do último"  pensou Dongo. 

Então, do nada, como se estivesse vindo do espaço sideral, apareceu ao lado de Dongo um Gato Simpático e sorridente  seria o gato de Alice no país das Maravilhas? , e no seu sorriso disse para ele bem baixinho: "Você poderia deixar eu entrar na sua frente?" Neste momento a cabeça de Dongo girou, sentiu um grande nó na sua garganta e seu coração disparou. "Aquilo não estava certo, aquele Gato Simpático era um grande oportunista, ele estava na fila desde as sete da manhã, aquele pedido não era nada nada razoável."  assim pensou o camundongo Dongo.

Mas o camundongo Dongo era muito bonzinho, e nesta condição de bondade angelical gostava de agradar aos outros  todos os outros  e não conseguia dizer um simples não; nesta condição gostava de ser muito bom e solícito para os outros, na esperança de que sua bondade pudesse preencher o vazio imenso que ele sentia dentro dele. 

Nesta condição, diante do Gato Simpático ali ao seu lado, a resposta do camundongo Dongo foi automática: "Não tem problema nenhum, pode entrar na minha frente." — um sussurro dentro dele dizia o inverso.

Naquele instante Dongo não disse o não  deveria ter sido um não bem rotundo , e nem se atentou para o fato de que o desrespeito não era tão somente com ele, mas também, para com todos os outros que estavam na fila atrás dele. Chegando a sua vez, Dongo finalmente pegou a sua carne e voltou para a sua casa, levando em sua mente aquele "não" não externado, aquele "não" agora transformado em um fantasma em sua alma.  Muitos e muitos outros "Nãos" não exprimidos ainda iriam infernizar a sua vida ao longo dos anos seguintes, comprimindo duramente suas emoções. 

Dongo sofria de codependencia, onde a dificuldade de dizer um simples não e o desejo de agradar aos outros são alguns dos inúmeros sintomas; no universo de Dongo, estes padrões comportamentais disparavam frequentemente como verdadeiras armas, cujos projéteis feriam duramente o seu sensível coração.

Em seu estado de codependência, no olhar de Dongo para o mundo exterior, existiam somente gatos — todos eram gatos — e ele, olhando para si mesmo, observava tão somente um camundongo, o mais incomum dos camundongos, o camundongo Dongo com um indigesto "não" preso na garganta.

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