Dongo Vivencia a Ira do Grande Gato Almirante

Era uma vez um camundongo chamado Dongo, o mais incomum dos camundongos; num certo dia, enquanto caminhava pelo grande navio — para Dongo o mundo era um grande navio —, Dongo avistou em um canto o velho monte de sucatas — aquilo já estava ali há muito tempo , e Dongo achava que não era problema dele. 

Naquele momento o grande Gato Almirante  um gato angorá senhor de toda a vida e todo o navio —,  que estava pelas proximidades, dirigiu-se a Dongo de forma direta e imperativa, delegando a ele uma tarefa: "Dongo, hoje alguém virá aqui pesar e levar todo este ferro-velho, e o valor combinado foi de X Cruzeiros por quilo; preste contas para mim no final do dia!"  os gatos angorás não falavam, eles ditavam!

O camundongo Dongo tinha pelo grande Gato Almirante um sentimento de profundo respeito e veneração — Dongo amava aquele grande Gato; seu coração disparou, ele precisava realizar aquela tarefa da melhor maneira possível  os angorás não admitiam falhas. 

Ao longo daquele dia Dongo brincou normalmente, sem preocupações, até que, lá pelas quatro horas da tarde parou um velho caminhão na porta da sua casa: Eram os gatos do ferro-velho. Dongo recebeu-os, e por algum tempo toda aquela ferragem foi pesada e removida dali  Dongo ajudou com alegria. Na hora do acerto das contas,  o Gato Ferreiro falou com Dongo que o valor combinado com o grande Gato Almirante era de Y Cruzeiros por quilo; fez então as contas e entregou para Dongo um grande número de notas. Dongo contou tudo  Dongo era bom de conta  e constatou que o valor estava certo. 

Dongo estava feliz; o grande Gato Almirante certamente ficaria muito orgulhoso com ele pelo belo serviço prestado. Contou então aquele monte de cédulas várias e várias vezes — Dongo era fiel , aguardando ansiosamente o momento de entregá-las ao grande Gato Almirante, "dever cumprido", pensou Dongo.

Já havia anoitecido quando  o grande Gato Almirante finalmente atracou o seu barco e regressou ao grande navio; Dongo, cheio de satisfação, correu até ele falando com entusiasmo que a questão do ferro-velho estava resolvida, que o quintal estava finalmente limpo, e então, cheio de contentamento, exibiu para ele aquele maço de velhas notas — os olhos de Dongo brilhavam de alegria

— Quanto o Gato Ferreiro pagou por cada quilo de ferro-velho Dongo?  questionou o Gato Almirante.

 Pagou Y Cruzeiros por quilo grande Gato Almirante.  Respondeu o camundongo Dongo.

 Y? Como Y Dongo, se eu combinei X Cruzeiros por quilo? Você é uma Besta Dongo!  gritou duramente o grande Gato Almirante já de semblante carregado — os angorás gritam.

Durante alguns instantes Dongo ouviu cobras e lagartos, sentindo aquela dolorosa vergonha tóxica; ele não conseguia compreender onde havia errado — minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa , não se lembrava mesmo se o valor combinanado era X ou Y, e o grande Gato Almirante naquele momento, como um deus Netuno enfurecido emergindo dos abismos oceânicos, ou ainda,  um mitológico Hades surgindo repentinamente das profundezas do mundo subterrâneo, descarregava sobre o pobre camundongo toda a sua pesada e terrível cólera — os angorás não controlam suas emoções.

Dongo ouvia tudo calado  os angorás não gostam de diálogo —, e no final, depois de ter sido abandonado ali pelo grande Gato Almirante — os angorás abandonam as vítimas , ficou chorando sozinho  os angorás não gostam de choro  com aquele monte de velhas notas nas mãos, "malditas notas", pensou Dongo. Começava a nascer paulatinamente no coração do camundongo Dongo, uma relação de amor e ódio com o grande Gato Almirante, bem como, com todos os gatos angorás do mundo — os rios nascem das gotas

Como Dongo não podia externar a sua raiva — somente o grande Gato Almirante podia sentir raiva no navio , esta foi sendo ao longo dos anos repetidamente armazenada dentro dele — raiva congelada. Acontece que aquela raiva toda era profundamente tóxica, e com o passar do tempo, esta toxidade, gota a gota, começou a abrir no âmago do camundongo Dongo pequeninos orifícios que foram crescendo a cada dia  como uma grande erosão provocada pela enxurrada constante , fazendo surgir em seu interior um vazio fundo e enorme, uma verdadeira depressão. 

Dongo estava desenvolvendo naqueles tempos uma doença ainda desconhecida da ciência dos homens de então — a codependência. Dongo, o mais incomum dos camundongos, era uma criança, uma adorável e amável criança.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Agricultor e a Poetisa Ferida

O Marido, a Mulher, o Rio e a Calça

A Finitude das Redes e a Infinitude do Mar