O Quarto Passo é um Cálice

O Quarto passo é um cálice derramado, cujo conteúdo não devo beber, pois envenena o meu viver; estando na sala e no Quarto Passo, emborco o cálice, deixando sair do meu universo emocional minhas misérias morais. Não é nada fácil fazer isto.

Vou chegando à sala; meu ego, como sempre, me acompanha até a porta de vidro e, como costumeiramente faz, não entra; ele não gosta de luz, sinceridade e espiritualidade. Fica ali do lado de fora aguardando minha saída, a fim de voltarmos juntos para casa. 

A reunião tem o seu início e os companheiros começam, um por um, a fazer cada qual o seu próprio inventário pessoal. Chega finalmente a minha vez... Meu coração dispara, meu sangue esquenta e corre rápido pelas artérias  até parece um corredor de fórmula 1 , vou começar a emborcar o cálice...

Olho pela porta de vidro, meu velho ego está lá fora sentado em um canto, seguro de si, um pouco distante e quase cochilando. Começo a derramar o meu cálice... 

Meu nome é A, e tenho medo de viver; sou muitas vezes distante e indiferente, e não raras vezes, bastante intolerante...

Meu velho ego fora da sala, desperta e começa a ficar incomodado com o meu inventário; começa a fazer sinais atrás da porta de vidro, convidando-me a ir embora, gesticulando e falando: Cale-se, cale-se...

Não me calo e continuo derramando o cálice de minhas dificuldades emocionais: Tenho dificuldades de gostar das pessoas, principalmente as mais próximas, não gosto de ser questionado, quero sempre impor minha vontade sobre os demais...

— Cale-se, cale-se e vamos logo embora daqui  — grita o meu ego irritado, avermelhado e assoberbado fora da sala.

Não me calo, e o cálice continua a ser derramado... muitas vezes procrastino os problemas, quero receber mais do que dar, fico de cara feia e faço birra quando sou contrariado...

O ego lá fora está rubro de raiva, gritando e esperneando, chega mesmo a rolar pelo chão... 

— Vamos embora desta maldita sala, cale-se, cale-se... fale banalidades, fale sobre o tempo, fale sobre futebol, fale sobre os outros... cale-se, cale-se, saia desta sala de 12 Passos e vamos embora, não aguento mais tanta sinceridade...

Não me calo, e o cálice continua a ser derramado até que termina o meu tempo de falar. 

Só por hoje cálice derramado, só por hoje um pouco menos de veneno em mim; só por hoje tive a coragem de não me calar, calando tão somente o meu infantil e ignorante ego lá fora da sala, atrás da porta de vidro, atrás da porta da vida, amargurado e aborrecido, olhando ainda para mim através do vidro, dizendo-me ainda: Cale-se, cale-se...

Saio da sala e abraço o meu velho ego; como ele precisa do meu caráter, da minha força, da minha coragem, da minha sinceridade, do meu amor... ele tenta ainda falar alguma coisa, e eu, com energia e carinho, segurando em sua mão, digo para ele, como se estivesse falando com um criança mimada: Cale-se meu filho, cale-se e vamos para casa. 




Comentários

  1. Belíssimo! Parabéns amigo.
    Só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida.

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