Uma Verdadeira Fábula
O Moço das Letras estava no Rio de Janeiro, almoçando no centro da cidade; o dia estava quente, muito quente. Então ele sentiu um beliscão em sua perna, "algum inseto talvez", pensou ele. Não era inseto, era sua Criança Interior que resolveu aparecer por ali.
— Alo Moço das Letras.
— Tudo bem Criança?
— Está faltando água!
— Sempre houve problema de falta d'água na cidade do Rio de Janeiro, principalmente na zona oeste, desde a época do império.
— Não... está faltando água no Reino do Sul. Você consegue uma sobremesa para mim.
— Claro Criança...
Poucos minutos depois a Criança estava comendo doce de abóbora, enquanto o Moço das Letras almoçava.
— Posso ditar uma história para você? — Perguntou a Criança.
— Complicado agora, não tenho como escrever aqui no restaurante.
— Fazemos assim: Eu vou comendo o doce e narrando a história, e à noite, na sua casa, você escreve, compreendeu? — Respondeu a Criança toda lambuzada de doce de abóbora.
— Está bom assim.
— Uma verdadeira fábula! vamos lá...
— Esse é o Título Criança?
— Sim, é esse.
Então, naquele dia quente de verão carioca, enquanto almoçava, o Moço das Letras foi registrando em sua mente a história que era ditada pela sua Criança Interior...
Era uma vez, lá no distante Reino do Sul, nas terras do príncipe Zinho, um monarca preocupado com a falta d'água que cada vez com mais intensidade, assolava toda aquela grande região.
Algo precisava ser feito, ano a ano a quantidade de água escasseava substantivamente no Grande Reino dos Confins do Sul da Escuridão. Rei Zão, o grande soberano, reuniu o seu conselho; o problema foi exposto, e a partir de então, seus conselheiros passaram a estudar uma solução. Comitivas foram enviadas para aldeias distantes em busca de sábios, arquitetos e engenheiros.
Alguns meses depois, através de intensas buscas, os conselheiros finalmente encontraram um grande sábio no Reino do Meio, mais precisamente na Aldeia dos Mestres, de nome Silvestre, professor Silvestre, e um pouco mais além, já próximo ao Reino do Norte, na Aldeia dos Construtores, o eminente engenheiro Aquarius, especialista comprovado em soluções para grandes problemas hídricos.
Naquela tarde ensolarada no grande salão real, o rei, seus conselheiros, o professor Silvestre, o engenheiro Aquarius e alguns outros mais reuniram-se para ouvirem as propostas dos dois convidados sobre a questão da escassez de água. Príncipe Zinho, que andava por aqueles lados do palácio naquele instante, resolveu por simples curiosidade ficar por ali, tentando entender o que diziam aqueles homens todos.
O professor Silvestre foi anunciado, e convidado a falar. Dirigiu-se então ao centro do salão, agradeceu a todos pelo convite, e de forma muito natural, como se estivesse contando histórias para crianças, foi fazendo sua explanação...
— Venho da Aldeia dos Mestres, que fica muito próximo de uma grande floresta com grande abundância de água. Nesta floresta, mesmo em períodos de grande estiagem, sempre brota água em diversos locais.
— Chove muito sobre esta floresta Professor? — Perguntou um dos conselheiros.
— Sim chove... creio que chove tanto quanto aqui. Porém, a floresta com suas árvores e copas frondosas retém a água, que em gotas vai caindo no chão, e pouco a pouco penetra no solo alimentando o lençol freático, que nutre as fontes, que enche os riachos, que correm para os rios... perenemente.
— Professor, como esta floresta tão distante pode resolver nosso problema de água aqui onde estamos agora? — Perguntou outro conselheiro.
— Percebo que aqui quase não existem árvores, suas florestas foram a muito destruídas; minha sugestão é que vocês tragam a floresta de volta, e com a chegada desta, a água novamente voltará a abundar.
— Professor Silvestre... — falou um outro conselheiro - a poucos anos atrás esta grande floresta do Reino do Meio não existia. Creio que a natureza foi generosa por lá, facilitando o nascimento e a proliferação da mesma. Como poderíamos trazer então a floresta de volta, se aqui o solo é tão árido e seco. Creio que para a realização desta tarefa seria necessária a força de um grande contingente de homens.
— A grande floresta do Reino do Meio foi plantada por um menino, tendo unicamente como ajudante uma vira-lata.
A gargalhada foi quase generalizada, — aquele professor devia ser meio maluco —, onde já se viu um único menino plantar toda uma floresta. O grande rei ficou em silêncio, simplesmente observando; os olhos do príncipe Zinho naquele instante brilharam como nunca.
— Seria o nome do menino Hércules professor Silvestre? — falou em tom de troça um dos conselheiros.
— Não senhor conselheiro, não... o nome do menino é Lampião, e o nome de sua pequena vira-lata é Luz.
— Uma vira-lata ou um leão? — indagou outro conselheiro.
— Apenas uma vira-lata senhor conselheiro, muito bonita por sinal.
— Professor Silvestre, qual seria o custo para colocarmos em prática o que foi exposto? — Perguntou o economista real.
— Um custo muito baixo. Alguns viveiros bem simples para as mudas poderiam ser construídos, ou mesmo improvisados em vários locais, e os próprios habitantes deste reino poderiam cuidar destes, plantando as árvores nas horas vagas. As sementes não seriam problema, elas estão em toda parte. Iniciado o processo, em quatro ou cinco anos os resultados começariam a aparecer, e paulatinamente a água voltaria a brotar do chão em abundância.
— Uma verdadeira fábula... — comentou o economista real.
Naquele instante, quando terminava sua exposição, o professor Silvestre notou que todos naquela sala estavam distantes e descrentes de tudo o que ele havia falado. A única exceção naquele adormecimento coletivo era a do príncipe Zinho, que com sua pureza inata, estava tão desperto no meio daqueles homens tão adormecidos pela fábula. Os olhos do príncipe, cheios d'água como as fontes, brilhavam... brilhavam de amor.
O engenheiro Aquarius foi convidado a falar. Sua exposição foi direta e objetiva, tudo muito bem calculado.
— Vossa Majestade, senhores conselheiros... A solução para o problema é simples. As montanhas estão a pouco mais de sessenta quilômetros daqui. Todos sabemos que existe água em abundância por lá o ano todo, então, a construção de um simples aqueduto resolverá o problema da escassez hídrica por muitos e muitos anos.
— Qual o custo desta obra engenheiro Aquarius? — Indagou o economista real.
— Devido a distância, um custo elevado. Pelos meus cálculos, durante dez ou onze anos os impostos deverão ser dobrados, mas apesar do sacrifício de toda a população, os benefícios futuros serão imensos. Apesar de milhões em moeda, com a construção da grande via hídrica, por séculos, o grande Rei Zão e todo o seu conselho real serão venerados e lembrados por todos.
— Uma verdadeira fábula! — comentou o economista real.
Naquele instante, quando o engenheiro Aquarius terminava sua exposição, o professor Silvestre notou que todos naquela sala estavam muito interessados em tudo o que foi falado pelo grande construtor. A única exceção naquele interesse coletivo era a do príncipe Zinho, que com sua pureza inata, estava tão adormecido no meio daqueles homens tão despertos pela fábula. Os olhos dos homens, secos como os desertos, brilhavam... brilhavam de cobiça.
O Moço das Letras terminou de digitar o texto depois das dez horas da noite. Quando preparava-se para desligar o computador, a sua Criança Interior novamente surgiu.
— Não desligue ainda Moço, faltou dizer uma pequena coisa... —falou a Criança Interior sentada no sofá ao lado.
— Onde você andou a tarde toda Criança? Depois do almoço não te vi mais.
— É verão Moço das Letras, e o dia estava lindo e ensolarado. Fui admirar o mar e andar descalço pelas areias da praia de Copacabana. Gostou da fábula?
— Uma verdadeira fábula.
— Então escreva para para encerrar: "A linguagem do coração desperta as crianças e a linguagem do mundo entorpece os homens".
— Eu te amo Criança — falou o Moço das Letras com os olhos tomado pelas lágrimas. Olhou para o sofá, e depois daquele dia tão cheio de vida e atividade, sua Criança Interior estava ali, cansada, feliz e adormecida. Dormiu ali mesmo, sem banho, toda suja de areia da praia de Copacabana.
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