Luz e Lampião

No início tudo era luminosidade e unidade, e todos viviam em paz em um único e pacífico Reino. Havia entre os habitantes a mais profunda harmonia, todos amavam-se uns aos outros. Isto foi no início, quando tudo era luz.

Contudo, de algum lugar apareceu a escuridão, e desde então metade do tempo de viver passou a ser escuro, e a outra metade claro, fenômeno que passaremos a denominar simplesmente como noite e dia. Numa noite fria, sob o calor da fogueira, alguns habitantes do Reino começaram a afirmar que a escuridão havia surgido do norte, enquanto outros juravam que positivamente havia surgido do sul. Noite após noite a discussão ocorria, então nasceu entre eles a discórdia, e esta foi tão profunda que o Reino único partiu-se em dois.

Os adeptos da escuridão do norte partiram para lá, para o norte, e lá fundaram o Reino Grandioso do Norte da Escuridão, ou simplesmente o Reino do Norte. Os demais, os afeitos à escuridão do sul também partiram, e bem distante do norte, lá nos confins do fim do mundo, fundaram o Grande Reino dos Confins do Sul da Escuridão, doravante o Reino do Sul.

Onde reinava o Reino único ficou somente um menino de nome Lampião e a sua cadelinha de nome Luz, e como Lampião conhecia mais a Luz do que a escuridão, não migrou para nenhum dos novos Reinos, e resolveu ficar então onde estava, no que agora passaremos a denominar de o Reino do Meio.

No Reino do Meio, a fim de proteger-se do frio que chegava com a escuridão, Lampião construiu uma pequena casa que ele dividia com a Luz, não se sabe ao certo se era uma casinha de cachorro onde morava um menino, ou se era uma casinha de menino onde morava uma cadelinha.

O menino Lampião amava muito os do Reino do Norte, bem como os do Reino do Sul, então, quando era possível - a distância era muito, muito longa -  acompanhado pela Luz, visitava os dois Reinos na esperança, quem sabe, de uma reunificação, porém, sentia ele, a tarefa era impossível, pois nenhum dos dois Reinos abriam mão de seus pontos de vista acerca da origem escuridão.

Com o passar do tempo a discórdia, apesar da distância, acentuou-se profundamente, transformando-se em ira recíproca, e desde então os inteligentes habitantes daqueles Reinos começaram a planejar formas de atingir, mesmo longe, o Reino rival. Os do Reino do Norte estavam mais avançados nestes projetos, até que um dia, conseguiram com sucesso enviar um estúpido  e escuro míssil mental, emocional e escuro, de longo alcance, que atingiu em cheio o Reino do Sul, deixando negro todo o céu e magoando toda a gente.

Os do Reino do Sul então investiram menos em escolas e mais em seus artefatos bombásticos, e pouco tempo depois conseguiram também, com exito, atingir as longínquas regiões distantes do Reino do Norte, alargando por lá o tempo escuro de viver. A partir deste míssil lançado pelas bestas apocalípticas dos confins do fim do mundo do sul da escuridão, foi declarada oficialmente a guerra entre os dois Reinos.

Neste mesmo período de início da guerra dos mísseis mentais e emocionais de longo alcance, todos os dias Lampião e Luz saiam para o campo e lá cuidavam do solo e plantavam nele inúmeras árvores, tentando deter o avanço do deserto escuro que passou a existir e a crescer após o fim da unidade do Reino. Lampião e Luz sabiam que as árvores vistas do céu eram como seres estelares, irradiando muita luz, detendo o avanço da escuridão.

Com o começo da guerra, com chuvas constantes de estúpidas e orgulhosas bombas - bombas de ódio, de ressentimento, de rancor, de mágoa... - , eventualmente, por erro de cálculo de ambos os Reinos, algumas delas atingiam as cercanias do Reino do Meio, onde viviam em paz Luz e Lampião, ferindo de dor o coração de ambos. Nasceu então uma preocupação na vida do menino, que passou a ir para o campo sempre de olho no horizonte, e quando a escuridão das bombas escurecia o céu do lado norte, ou ainda do lado sul, ele dava o alerta para a Luz: "Lá vem bomba Luz" e saiam ambos correndo campo afora em direção ao refúgio da casinha, onde entravam assustados, com o corações em desalinho, encolhidinhos ali dentro, Lampião abraçadinho à Luz, que alegre e grata, lambia o rosto dele, e de tão próxima...

A rotina das bombas virou uma constante, o menino sempre gritando "Lá vem bomba Luz", ambos sempre correndo campo afora... Até que um dia o céu escureceu muito rapidamente, eram bombas simultâneas de norte e sul, Lampião deu o alerta e correram em direção ao refúgio, eram muitas bombas, correram como nunca, correram como loucos. Quando chegou na casinha são e salvo, Lampião procurou pela Luz que não estava lá, naquele dia sua Luz se apagou, foi finalmente atingida por uma das estúpidas bombas, e naquela noite o menino viu-se chorando, abraçado somente com a escuridão que começou a nascer em seu coração.

No dia seguinte Lampião enterrou a sua Luz, e desde então, cheio de mágoa, dor e ressentimento, parou de cultivar seus campos, e naquele mesmo instante fundou ele mesmo o Reino do Meio da Escuridão, arquitetou e construiu diversas bombas mentais e emocionais  de curto, médio e longo alcance e passou a dispará-las também, ora apontando para o norte, ora para o sul, apontando até mesmo para o céu, para, quem sabe, atingir seu próprio Deus e vê-lo cair de lá, tanta era a dor em seu coração.

Com o fim da Luz no Reino do Meio, a escuridão passou a ser total, o frio aumentou sensivelmente, e o deserto da estupidez, sem a presença das árvores, foi aos poucos dominando todos os três Reinos.

Um tempo muito longo se passou, um tempo que não cabe neste conto, e nesta quase eternidade Lampião estava exausto de tanto disparar seu mísseis, sentia-se vazio e muito infeliz, a saudade da Luz era muito grande, então, em uma noite, muito cansado, ele adormeceu em sua casinha, e adormecido sonhou, e no seu sonho de guerreiro frustrado, vencido e amargurado, sua amada Luz apareceu para ele, e estava tão triste e opaca a Luz, ele sabia simplesmente pelo olhar...

- Por que está tristeza toda Luz? Ah amiga, já sei... São as bombas jogadas sobre você pelos malditos do norte e do sul.

A cadelinha Luz continuava olhando para ele com o olhar cheio de dor, e sofrimento....

- Menino, não me entristece as bombas do norte e do sul, o que mais me dói e me fere são as bombas jogadas por ti. Não é da sua natureza jogar bomba nos demais, você, Lampião, tem luz própria e não tem a menor aptidão para lidar com a escuridão. Volte aos campos e às árvores a fim de que sua luz volte a brilhar. Luz aproximou-se mais do menino, e de tão próxima... 

Desde então o menino não mais disparou mísseis para seus inimigos de norte e sul. Rompeu definitivamente com a escuridão, e foi aos poucos voltando e cuidando  do campo onde tudo era abandono e o deserto avançava.  Quando então o horizonte escurecia, ele não mais corria, pois Lampião possuía agora sua própria luz, os mísseis da escuridão não poderiam mais atingi-lo, e nos sulcos das bombas no chão do caminho, plantava determinadamente um sem número de árvores, reduzindo paulatinamente o deserto da estupidez humana de norte a sul. 

A cada dia crescia mais e mais a Luz de Lampião, Luz cálida e quente,  Luz tão perto e tão amiga dele, Luz que de tão próxima, podia mesmo lamber o seu rosto e ouvir o seu coração.

Escrevo como menino e para meninos, a fim de quem sabe um dia, alcançar o coração dos adultos que serão...






























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