O Soldado na Ilha

Naquele dia tão distante da década de quarenta do século passado, em uma tão remota ilha do pacífico os soldados faziam uma última revista, à procura, quem sabe, de algum inimigo escondido por ali. Observaram cada canto da ilha e não encontraram absolutamente nada, além de pássaros, árvores, coqueiros, areia, pedras... naquela pacífica e belíssima ilha nenhum vestígio humano. 

Eram muitos os soldados daquele batalhão naquela missão, que aos poucos foram  voltando para o navio, para o continente, para a guerra, para a vida. Um dos soldados presente ficou encantado com a ilha, havia tudo ali, cocos, peixes, raízes em abundância, frutas, sombra e água fresca, sossego, tudo... Então, durante a batida militar um pensamento começou a povoar sua imaginação, um maravilhoso e mágico pensamento... "Eu poderia viver nesta ilha solitária em paz para sempre, longe dos horrores da guerra humana." 

O pensamento, como um pássaro, pousou em sua mente, e aos poucos foi fazendo o seu ninho, e o soldado foi paulatinamente encantado-se com aquela ideia e com aquele passarinho tão lindo em sua mente. A decisão final foi tomada a partir da visão de  uma gruta escura com uma fonte de água bem próxima, a verdadeira imagem do paraíso, um presente dos deuses aquela ilha deserta, aquela fonte, aquela gruta... Em pouco tempo o passarinho mental foi cantando sua melodia maravilhosa, e aos poucos o soldado foi retardando o passo, distanciando-se cada vez mais dos colegas de farda, do navio, da guerra, do continente, do retorno...

Pensou ainda: "Somos muitos, quando derem por minha falta, o navio já estará em alto mar, e então, mesmo que voltem, escondo-me no fundo desta gruta e jamais serei localizado." Assim ele fez, e assim aconteceu, o pelotão retornou, procuraram pelo soldado que não foi encontrado, - talvez tivesse precipitado-se por um despenhadeiro, ou mesmo caído no mar.

Por muitos anos na sua deserta ilha o soldado viveu, e sempre que um navio surgia no horizonte, ou um avião cruzava os céus, ele corria para a sua escura gruta, a fim de fugir da guerra, do continente e do retorno ao mundo dos homens. "Que guerra terrível aquela", pensava ele.

Com o passar do tempo foi tomado por melancolia, angústia, dor, medo, solidão, mas achava que tudo aquilo eram os efeitos da guerra exterior lá do continente, e continuou ainda, mesmo profundamente infeliz, escondendo-se dos navios e aviões, por muitos anos mais, até quase o envelhecimento, no seu tão amado desterro marítimo, na sua gruta escura. 

Quarenta anos depois de sua chegada à ilha, numa tarde em que ele colhia mariscos à beira mar, não percebeu a chegada de um barco que atracou na praia, de onde desceram algumas pessoas que o viram e o abordaram. Não havia mais tempo de correr, ele estava descoberto, tentou falar alguma coisa, mas havia perdido o dom da comunicação com os outros, e então silenciosamente e cheio de medo, - poderiam ser os inimigos - foi lentamente voltando para a sua gruta de cabeça baixa e olhar distante e perdido, onde sentou-se, esperando o pior, quem sabe a prisão, ou mesmo o fuzilamento.

Os integrantes do barco o seguiram, - eram pescadores - e na gruta viram seu velho uniforme de guerra pendurado em um galho, seu cantil e um par de coturnos em um canto, e numa pedra uma foto muito amarelada em preto e branco de uma senhora, onde podia se ler: "Que Deus te acompanhe meu filho, sua mãe te ama muito, e reza a Deus todo os dias pelo fim da guerra e pelo seu retorno." A data registrada na fotografia era de maio de 1940.

Um dos pescadores, estupefato com a situação, em um átimo de segundo compreendeu tudo, e então voltou para o insulano solitário sentado e pensativo em um canto, com o olhar completamente alheio a tudo ao redor e disse carinhosamente para ele: "Senhor, Senhor... a guerra terminou a mais de quarenta anos atrás, o Senhor pode ir embora agora."

Ele não conseguia mais falar, mas conseguiu compreender o que havia sido dito, e aquela voz foi como um raio dentro dele, - o primeiro raio -, sua dor foi intensa, quase infinita. Levantou-se então tomado da mais profunda melancolia, caminhando para fora da gruta, e lentamente foi subindo uma colina onde podia avistar toda a ilha e o mar em volta, e então ele refletiu...

"Passei muitos anos nesta ilha tentando fugir da guerra, das dores e do mundo, e agora finalmente sou livre e posso ir embora do meu refúgio... Se eu me afastar daqui, poderei ao longe avistar a ilha que foi meu auto desterro por tanto tempo, a ilha do medo, da angústia, da solidão, da escuridão,  da indiferença; a ilha de tantos temores, anseios e saudades, a ilha onde por décadas travei a minha própria guerra, a ilha que eu mesmo sou, ilha esta cravada não no grande e belo oceano pacífico ao redor, mas tão somente no imenso e tenebroso mar de minha própria depressão".

Este foi o segundo e derradeiro raio dentro dele, e desta vez a dor pela constatação de que havia passado pela vida na sua solitária, e mesmo infantil fuga pessoal na sua própria ilha, sem ter efetivamente vivido e combatido com os seus irmãos em humanidade, foi ainda mais intensa, uma verdadeira bomba de angústia com mil megatons, em seu frágil e solitário coração de soldado. 

Então ali no alto da ilha o velho combatente finalmente tombou vencido, não pela guerra dos homens travada no continente décadas atrás, mas tão somente pela guerra solitária e interior vivida dentro dele mesmo, uma guerra de ilusões, tombou completamente derrotado para não mais levantar-se.

No local onde o combatente caiu para sempre, os pescadores respeitosamente improvisaram um túmulo com pedras, colocaram por cima deste seus pertences, e ao lado uma plaqueta de metal que haviam encontrado no bolso do uniforme daquele homem: Soldado Desertor da Vida. Era esta sua identificação registrada na placa enferrujada pelo tempo.

Crônica: O Soldado na Ilha
Fonte: Blog do Agricultor Urbano
Endereço:http://oisiola.blogspot.com/2018/08/o-soldado-na-ilha.html






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