O Menino e o Circo

O Moço das Letras estava na cozinha, na cidade do Rio de Janeiro, terminando de preparar o jantar daquele dia, — uma sopa de lentilhas.

— Como tem passado Moço das Letras? — Falou a Criança Interior ali do lado da pia, ainda com aquela camisa vermelha e branca

— Vou bem Criança, vou bem...

— Belíssimas panelas as suas. Todas em aço inox e brilhantes, bem mais brilhantes do que as panelas do circo.

— Circo? Que circo Criança? Além do guaraná lá na Praça do Estácio naquele domingo, você bebeu também outra coisa?

 Hoje escreveremos sobre um certo Menino...

 Qual deles? o menino Lampião do Reino do Meio, ou o menino Alecrim do Reino do Norte; ou ainda, o príncipe Zinho do Reino do Sul.

 Nenhum deles; escreveremos sobre o Menino do Reino do Concreto.

 Reino do Concreto? Que Reino é esse que eu não conheço.

 Conhece sim Moço das Letras. É o reino onde você vive.

 Ah... entendi. E é Concreto porque é real.

 Não Moço das Letras, Não... Todos os Reinos de nossas histórias são reais; todos os meninos em seus reinos, apesar da distância e do tempo, são reais também. O reino que você habita é concreto porque existem muitas pontes, casas, viadutos, edifícios, muros, monumentos... tudo, tudo de concreto. Entendeu?

 Entendi Criança. E qual é o nome do menino do Reino do Concreto.

 Simplesmente Menino... Você já escreveu muito sobre ele, porém, como eu não o havia identificado com um nome específico, você não se deu conta de sua real, ou melhor, de sua concreta presença.

 Poderia dizer-me Criança, o nome de uma crônica, uma apenas em que ele foi mencionado.

 Claro... O Galo da Costureira é uma delas, dentre muitas outras.

O Moço das Letras lembrou-se então da mencionada crônica, e conseguiu finalmente situar-se com relação àquele Menino, que já andava mesmo há muito tempo habitando o mundo de suas letras.

 Percebeu finalmente o Reino do Concreto e seu respectivo Menino?

 Percebi Criança, percebi; se tudo é real, por que então as histórias do menino Lampião, do menino Alecrim e do príncipe Zinho começam, invariavelmente, por era uma vez, e as do Menino do Reino do Concreto não?

 Boa pergunta Moço das Letras. Nas histórias que começam com era uma vez, as histórias dos outros meninos, nestas, eles serão eternamente meninos, porém, nas histórias do Reino do Concreto, o Menino efetivamente já cresceu, e os relatos são todos no passado, época da sua infância ou meninice. Vamos então narrar mais uma história sobre ele. É de um tempo em que os circos eram muito comuns nas cidades. Você consegue para mim um pouco desta lentilha, está fazendo frio e estou com fome.

Instantes depois, enquanto comiam a lentilha à mesa da cozinha, a Criança Interior começou a contar a história...

O Menino devia ter dez, ou quem sabe onze anos de idade, não mais do que isso. Nas cercanias do seu bairro haviam ainda muitas áreas desabitadas, na verdade haviam mesmo poucas casas, pobres casas. Uma única vez apareceu por lá um grupo de ciganos, armaram seu acampamento, ficaram algum tempo, fizeram seus negócios, leram mãos alheias, e como eram ciganos, num determinado dia, simplesmente foram embora. 

Os circos eram mais frequentes; o Menino viu muitos chegarem, com aqueles grandes carros, aquelas pessoas louras e bonitas, aquele sem mundo de coisas para montar, aquela movimentação geral, aquelas roupas com um vivo colorido, aquele mundo de afazeres e alegria ambulante... "Um dia vou trabalhar no circo também", pensava o Menino enquanto acompanhava a montagem do picadeiro e as lonas subirem, dando ao terreno baldio um ar de espetáculo de gala. 

Montado o circo, saiu pelas ruas do bairro o carro de som seguido por um caminhão desfilando seus artistas e anunciando para todos a data e a hora da estréia; as pessoas encantadas em seus portões, a meninada acompanhando aquilo tudo, como em uma procissão, uma festa, uma celebração...

 Esta noite, no Grande Circo Internacional, o trapezista, o homem que come fogo, a mulher de barba, o globo da morte, o mágico, o equilibrista, o palhaço...  anunciava alegremente a voz no carro de som.

Tudo era grandioso, era o maior circo do mundo, com um espetáculo  anunciava a voz  de fazer mesmo inveja aos grandes circos romanos da época do grande império, não deixando mesmo nada a desejar para os grandes circos europeus contemporâneos.

Na noite do primeiro espetáculo o Menino conseguiu com a Costureira alguns trocados; foi ao circo, comprou o ingresso, entrou e assistiu tudo com o brilho dos olhos de sua infância. "Que coisa fantástica esta, uma verdadeira maravilha, um mundo de músicas, luzes, alegria, moças bonitas, homens bem vestidos, palhaços alegres, exímios trapezistas, mágicos notáveis, palhaços engraçadíssimos; que mundo maravilhoso o circo, tudo internacional, que encanto, quando crescer viverei eternamente em um deles". Eram estes os pensamentos do Menino antes, durante e depois daquele primeiro espetáculo, que espetáculo!

Nos dias que se sucederam o Menino não voltou mais ao circo, o espetáculo continuava, mas o orçamento da Costureira já estava no final para aquele mês. Contentava-se então, em passar por lá e dar uma espiada e beber, nem que fosse uma pequena gota, daquela alegria toda da atmosfera circense. Naqueles dias de sonho, muitas vezes ele sonhou mesmo  coisas de menino  de, quem sabe, ser convidado pelo próprio dono do circo para fazer parte da trupe, viajando pelo mundo afora distribuindo alegria para todos. Que sonho!

Mais alguns dias depois e o circo estava, no horário do espetáculo, quase vazio; o orçamento geral do bairro estava chegando no limite , alegria de pobre dura pouco, muito pouco. 

Então, em uma certa noite do mês de junho  fria noite  o Menino solitariamente, vindo da casa de sua avó ali perto, passou perto do circo mais uma vez. As luzes estavam todas acessas, o espetáculo estava em andamento, mas havia algo estranho... O circo estava praticamente vazio, haviam pouquíssimas crianças lá, o dinheiro curto do povo havia finalmente chegado ao fim.

O Menino olhou para o circo, e pela primeira vez percebeu que haviam muitos buracos nas lonas, e seguindo adiante, aguçando ainda mais  seu olhar, notou que nos fundos, fora da grande lona da ilusão, haviam artistas com olhares tristes e distantes, percebeu angústia nos olhares daquelas mulheres louras e bonitas, notou ainda pobres e remendados agasalhos e muitas panelas sem brilho, panelas vazias.

Chegou em sua casa angustiado e chorando, uma grande dor corroía sua alma; naquela noite jantou,  como era deliciosa a comida de sua mãe  mas as imagem daquelas panelas vazias e daqueles olhares repletos de sofrimento naquela fria noite de inverno jamais o abandonaram. A dor daquela pobre gente, daquele circo tão pobre, passou a ser a sua dor também. 

O Menino somente voltou novamente a um circo trinta e cinco anos depois, em uma distante cidade, a fim de levar os seus pequenos filhos. Não foi para assistir ao grande espetáculo internacional, foi simplesmente pelos seus próprios meninos, como que cumprindo um dever paterno.

Terminada a história e a lentilha, a Criança Interior olhou para o Moço das Letras que estava com os olhos cheios d'água, olhos de Menino perdidos no tempo, perdidos naquelas lonas furadas daquele pobre circo de panelas vazias e alegria fugaz.

Quando deu por si, o Moço das Letras percebeu que a Criança não estava mais ali; assim como os circos, ela havia partido também, partido sobretudo o seu Menino, Menino coração.

Comentários

  1. Querido Agricultor Urbano, que colheita maravilhosa, você nos presenteou! Obrigada, Menino! Obrigada, Circo de Meninos e Circo de Gente Grande, Gente de Coração Grande!
    Benditas semestre da horta da costureira! Hallelujah!

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