O Galo da Costureira

A mãe costurava muito, dependia daquele trabalho para complementar o orçamento doméstico, e de quando em quando algum cliente não pagava pelo serviço, e ai então era acionado o menino, que além de brincar com os seus soldadinhos amados e baratos, também fazia o trabalho de cobrador oficial da costureira. E lá vai ele a pedido da mãe na casa de Dona Fulana de Tal, não gostava daquilo, onde já se viu sair pelas portas do mundo cobrando os outros, no fundo o que ele sentia era que cada um devia mesmo cumprir com suas obrigações e saldar seus débitos, porém... 

- Dona Fulana de Tal, minha minha mãe pediu para eu vir aqui. É sobre o dinheiro da costura...

- Fale com a sua mãe menino que estou de mudança, vou embora amanhã, e deixarei no galinheiro lá nos fundos do quintal um galo, assim que a mudança sair pode vir aqui e pegá-lo, esta é a forma como tenho de pagar pela costura.

E o menino foi-se embora, no fundo não era tão ruim assim, ele gostava das aves, na sua casa tinha mesmo um galinheiro com galinhas brancas, pretas, amarelas e carijós, entre outras, de forma que o galo seria muito bem vindo, pensava ele. 

E sua mãe foi avisada, concordando calada, e então esperaram pelo dia seguinte, e neste, a mudança realmente saiu, passando mesmo pela porta da casa da costureira, a cliente porém, não se sabe bem o porquê não olhou para o lado, onde mãe e filho estavam no portão, vida que segue, o caminhão desceu rua abaixo, rumo  ao mundo, e o filho, atendendo ao pedido feito com muita ternura pela mãe, seguiu contente e obediente rua acima, rumo ao galo, rumo ao galinheiro.


Deveria mesmo ser um galo grande e bonito, sua mãe costurava divinamente bem, um bom galo pagaria o trabalho honesto dela, pensava o menino em sua meninice. E feliz da vida, uma felicidade de criança em colo de mãe, entrou no quintal, dirigiu-se até os  fundos, abriu a porta de madeira e então a amarga surpresa: No galinheiro não havia galo, não havia galinha, não havia pintinho, não havia ovos, não havia nada lá. Foi um misto de raiva, revolta e indignação, o menino voltou para sua casa e contou para sua mãe, que calada ouviu e sofreu resignada diante do portão. 

A dor do menino era grande e profunda,  ele então cheio de amargura correu para os fundos do quintal e entrou na casinha do Camborde, o vira lata da casa, e abraçado no cachorrinho amigo chorou e chorou, chorou pelo galo que jamais cantou, chorou pela dor e pelo desrespeito à sua mãe, chorou também, mesmo sem o saber, por todos os honestos e bons, tão passíveis do engodo dos outros, chorou até cansar, tendo como única testemunha o vira lata amigo, aquele que veio do Sul da Bahia na carroceria do caminhão de seu pai.

Passados mais de cinquenta anos, o menino montado em sua bicicleta, trafegando pelas estradas do tempo aparece para o menino crescido de hoje, trazendo em sua mente o galinheiro vazio, trazendo em seu coração a dor de sua mãe e de todos os puros de coração, e é tão penetrante, verdadeiro e profundo o olhar da criança, um olhar tão puro e tão triste, um olhar cheio de brilho feito o sol, um olhar menino, menino que ainda busca uma resposta.

Naquele dia distante, sente agora o menino crescido, naquele dia já perdido nas noites do tempo, aquela criança havia por ela mesma descoberto todos os livros sacros da humanidade, havia descoberto os humanos e o mundo, havia também descoberto o Brasil, quinhentos anos depois das caravelas de Cabral, sentindo-se desde então como um pássaro, ou quem sabe um galo, alvejado nas asas de sua dignidade e profundamente ferido no voo de sua inocência.

O menino de hoje então aproxima-se do menino de ontem e sopra sobre suas asas, então o galo canta a primeira vez, e o menino sente-se melhor. O menino de hoje sopra profundamente mais uma vez sobre as asas do menino  que começa a sentir um grande bem estar, e o galo canta uma segunda vez. E ele sopra ainda, com todo o amor de seu coração, e então o menino percebe maravilhado suas asas totalmente restauradas,  e ouve agora o galo cantar pela terceira vez, e o galo estava solto e correndo feliz pelos terreiros da casa de sua mãe, e ele sentindo em si a liberdade chora de alegria, e finalmente descobre que aquele sopro era o perdão, filho do amor, sentimento tão profundo e eficaz, capaz mesmo de curar as feridas de todos os inocentes que possuem asas e voam com liberdade pelos céus dos homens, os céus do mundo, ou ainda pelos céus dos justos, o céu de Deus.


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