Se Alguém quer Matar-me de Amor, que Me Mate no Estácio
Já passavam das vinte e uma horas quando o Moço das Letras embarcou em seu ônibus urbano em direção ao bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro. Depois de alguns instantes estava no Estácio, perto do Sambódromo, onde avistou bem próximo uma praça tomada de crianças, jovens, adultos e idosos, todos ali, vivendo aquele instante descontraidamente, de um jeito único, um jeito bem carioca. O Moço das Letras observou a praça atentamente, e neste momento percebeu do seu lado no banco sua Criança Interior em pé, observando a praça também.
- O que está fazendo em pé aí Criança?
- Sempre gostei de andar em pé ao lado da janela, pois assim posso contemplar melhor a paisagem; faço isto desde os tempos em que ia com a costureira na feira.
O ônibus seguia o seu trajeto em direção ao Catumbi, o próximo bairro das cercanias.
- Nenhuma árvore... - falou a Criança Interior.
- É verdade Criança - respondeu o Moço das Letras. - A arborização das praças e ruas da cidade é de incumbência da prefeitura.
- Não... Nenhuma árvore plantada pelo Agricultor Urbano no dia de hoje. Posso ter contar esta história agora?
- Agora? Estou com bolsa, o ônibus está em movimento, não tenho como escrever, e já estamos próximos ao túnel Santa Bárbara.
- Não tem importância; enquanto atravessamos o túnel vou narrando a história para você, preste atenção...
Naquele domingo o Agricultor Urbano retirou de seu viveiro uma dúzia de árvores e partiu para o campo, a fim de plantá-las. Chegou ao local a dois quilômetros de distância, estacionou seu carro sob a sombra de suas frondosas amigas, e retirou a enxada, a cavadeira e as mudas do porta malas; fez seu costumeiro alongamento e, por alguns segundos, planejou onde plantaria aquelas mudas. Naquele instante um carro que descia a rua parou, e a condutora, acompanhada por um senhor e uma criança o abordou.
- Bom dia senhor...
- Bom dia minha senhora - respondeu o Agricultor Urbano.
- Esta muda ai pequenina é um angico vermelho?
- Sim... - respondeu o Agricultor.
- Meu pai ama os Angicos. E essa outra com folhas verdinhas é uma pitangueira?
- Sim... uma pitangueira.
Desta forma, árvore após árvore, aquela simpática senhora foi indagando sobre cada uma delas - ela conhecia as árvores -, e aquilo tocou o coração do Agricultor, finalmente aparecia alguém que conseguia entender sua própria linguagem.
- Tenho um sítio senhor - tornou a falar a senhora - e pretendo plantar lá muitas árvores da mata atlântica.
- Darei então para a senhora um presente no dia de hoje.
- O Angico? - falou a senhora com um brilho no olhar.
- Não... darei para a senhora todas estas mudas que estão aqui.
- Todas? - mas o que o senhor plantará hoje?
- Hoje não plantarei árvore nenhuma senhora, hoje minhas árvores serão plantadas por outras mãos.
Naquela conversa informal, o Agricultor descobriu que aquela senhora tão simpática havia nascido nas terras de uma certa costureira, uma terra outrora com maravilhosos cafezais, e que havia mesmo conhecido algumas pessoas tão próximas ao seu coração, lá pelas bandas da Vila do Sul, lá pelos lados da Guararema, lá na querida rua Sete, lá na inesquecível cidade de Alegre, no Sul do Espírito Santo.
Suas árvores estavam em ótimas mãos, refletiu uma última vez o Agricultor, quando, de mãos vazias, acenou para o carro que se distanciava. A criança no banco de trás acenou também.
O túnel havia ficado para trás, o ônibus já estava no bairro das Laranjeiras, e a Criança Interior não estava mais ali.
Lá pelas vinte e três e trinta, quando o Moço das Letras preparava-se para dormir, a Criança Interior novamente apareceu. Estava com uma camisa com listras horizontais em vermelho e branco, uma beleza, e trazia nos bolsos um sem número de guloseimas. A impressão é que havia chegado de uma festa de Cosme e Damião, mas não seria possível, o mês era janeiro.
O Moço das Letras olhou para ela e sorriu. Por onde andou Criança?
- Depois de narrar a história para você não resisti; voltei na praça lá no Estácio e brinquei com os meninos no pula pula. Ganhei amendoim, guaraná, cocada, paçoca, maria mole e balas. Sentia-me em casa. Havia uma roda de samba por lá, achei muito lindo, e fiquei ouvindo, ouvindo... Quando cantaram Luiz Melodia, um dos sambistas percebeu o meu vivo interesse, e me presenteou então com a camisa, uma linda camisa por sinal, amei... amei de paixão.
- Amou a camisa Criança?
- Também... mas amei sobretudo o povo carioca Moço das Letras, que gente bonita Moço, tão bonita quanto o pessoal lá das terras dos cafezais.
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