A Vaca Malhada e a Anta Letrada
Era uma vez uma Anta que vivia próxima a um grupo escolar nas cercanias de uma cidade do interior. Como nas proximidades da escola haviam muitas árvores frutíferas, a Anta ficava sempre por ali comendo as frutas. Com o passar do tempo ela foi se familiarizando com aquele ambiente escolar, com os professores, com os alunos, com os livros... passou então a ficar cotidianamente por ali, sempre por perto, de forma que, com o tempo, tal era sua proximidade com as salas de aulas, a Anta acabou — acreditem se quiserem — aprendendo a ler.
Quando os professores descobriram aquilo ficaram todos muito felizes com a Anta, que passou mesmo a frequentar as salas de aulas com as demais crianças, bem como a receber gratuitamente uma série de livros, que ela lia todos, com todo o gosto. Alguns anos depois, quando toda aquela geração de alunos concluiu o segundo grau, os professores perceberam também que a Anta havia acompanhado todos eles em conhecimento, podendo mesmo ser considerada uma Anta perfeitamente letrada.
A Anta participou da formatura com todos eles - conquistou mesmo o diploma —, e recebeu do prefeito o título de cidadã; construíram para ela uma estátua na praça central do município, onde podia se ler com todas as Letras: Anta Letrada, orgulho de nossa cidade e do nosso ensino.
Com o fim do curso, assim como os alunos, também partiu a Anta, partiu para o interior, quem sabe poderia levar um pouco de cultura para outros animais. Passou a viver então mais próxima à natureza, em um local com muitos bosques e pastos abundantes, onde co-habitavam pacificamente um sem número de bichos.
Naquele local tudo era paz e equilíbrio, não faltava nada para ninguém, até que, depois de algum tempo, as chuvas começaram a ficar mais escassas; o capim foi ficando menos verde, as árvores com menos frutas... começou então a nascer inquietação e preocupação entre os bichos.
A Anta, de forma paciente e simples, explicou para eles que aquilo era natural, estavam no inverno, e que depois de uns três ou quatro meses tudo voltaria ao normal; os animais na sua simplicidade ouviram a Anta e concordaram com ela — tinha conhecimento aquela Anta —, pensavam assim todos os bichos, ou melhor, todos, exceto a Vaca Malhada.
— Como você sabe de tudo isso Sua Anta! — falou a Vaca Malhada.
— Aprendi na escola Vaca Malhada, aprendi na escola...
Na sua ignorância milenar a Vaca Malhada não conseguia compreender, "onde já se viu uma Anta conhecer mais das coisas do que uma Vaca", pensava ela enquanto digeria o seu capim. O tempo foi passando, a seca se intensificando, a apreensão entre os bichos aumentando, e a Anta Letrada sempre tranquila, sugerindo equilíbrio e racionamento de alimentos.
Próximo ao local onde vivia a bicharada havia um colina muito alta e extensa, onde um dia a Vaca Malhada subiu até o topo em busca de capim. Chegando lá no alto, divisou ao longe uma grande região desértica, e além, muito além, de forma indefinida, viu um lugar que ela achou ser uma grande planície verdejante. A Vaca Malhada não achou nenhum capim e sua fome aumentava a cada dia.
Os animais estavam ficando todos apreensivos com a falta de alimentos, alguma coisa precisava ser feita. A Vaca Malhada resolveu então organizar uma assembléia geral a fim de deliberarem sobre aquele problema — A Vaca Malhada era muito respeitada na comunidade dos bichos. Ficou tudo agendado para o início do anoitecer.
Todos os bichos estavam lá, e a Vaca Malhada presidiu a assembléia. Narrou para todos que naquele dia havia subido a grande colina, e avistou além do grande deserto uma grande imensidão verdejante, um oásis maravilhoso.
— Aquela planície com abundância de alimentos é a solução para todos os nossos problemas — falou a Vaca Malhada. — Pelos meus cálculos, em um dia de marcha estaremos todos lá, e então teremos água e alimento em abundância para todos. Alguém tem alguma objeção?
A Anta Letrada que participava do evento com os demais bichos pediu a palavra.
— Excelentíssima Vaca Malhada... consultando o atlas que trago aqui comigo, percebo que a marcha até o ponto mencionado é de no mínimo dois dias, e observo também nos mapas que não existe ao longe planície verdejante nenhuma.
A Vaca Malhada ficou rubra de raiva e despeito, mas simulou suas emoções, precisava impor sua vontade sobre os demais.
— Dona Anta - falou a Vaca Malhada — Poderia, por favor, trazer o seu Atlas até aqui, a fim de que eu possa consultá-lo também?
A Anta deslocou-se no meio da bicharada, e entregou o atlas para a Vaca Malhada que o folheou por alguns instantes. A Vaca Malhada não viu nada no atlas, não viu o deserto, não viu a planície verdejante, não viu os vales e as montanhas; a Vaca não viu nada, pois não sabia ler, ou melhor, viu somente a celulose do papel. A orgulhosa Vaca Malhada continuou mais algum tempo observando aquele amontoado de papéis — precisava encontrar uma saída —, e os bichos aguardando, aguardando...
Então, lentamente, teatralmente, a Vaca Malhada colocou o atlas na boca e o engoliu. Voltou-se então para a Anta que estava ali do seu lado.
— Sua Anta! — gritou a Vaca — Consultei cada particularidade do seu atlas e conclui que você está redondamente enganada. Tanto tempo na escola Sua Anta, e nem mesmo aprendeu a observar alguns mapas básicos, francamente...
A gargalhada foi geral, todos riram da estúpida Anta e deram grandes vivas à Vaca: "Vaca Malhada nossa grande líder, Vaca Malhada nossa grande guia..."; por aclamação, todos aprovaram os planos da Vaca Malhada , e resolveram partir no dia seguinte bem cedo. A Anta observou tudo aquilo e manteve o seu equilíbrio emocional; além de culta, era também muito equilibrada, humilde e serena.
Na manhã seguinte, bem cedo, os bichos partiram em retirada, tendo como guia a Vaca Malhada; ficaram apenas a Anta, alguns bichos mais velhos e doentes que não possuíam energia suficiente para a grande jornada, e ainda alguns outros que confiavam plenamente nela.
— Adeus Sua Anta — falou de forma debochada a Vaca Malhada, liderando a marcha.
Depois da partida dos bichos, a Anta Letrada reuniu os que haviam ficado, organizou um sistema de racionamento de alimentos, e tranquilizou a todos, dizendo que em pouco tempo as chuvas retornariam.
A Vaca Malhada e toda aquela bicharada haviam andado todo o dia sob um sol escaldante em um mar de areia. Pelos cálculos da Vaca já deveriam estar chegando naquelas planícies verdejantes, mas a tarde caiu e a noite principiou e ao redor deles somente areia e rochas. Os animais estavam cansados, famintos, sedentos e inquietos, e a Vaca começava a ficar apreensiva, mas não admitiu o fato para para ninguém.
— Vamos caminhar um pouco mais... — falou ela com um profundo ar de preocupação -, creio que dentro de poucas horas chegaremos finalmente ao nosso destino.
Andaram a noite inteira e ao amanhecer uma sensação de desconforto tomava conta de todos os animais: todos estavam fatigados, famintos, molhados, sujos de lama, picados por inúmeros mosquitos, sentindo frio, muitos com barro até o pescoço... A Vaca Malhada havia ido mesmo para o brejo, onde estava agora atolada até o pescoço, não somente pelo barro, mas também pela sua estúpida presunção, sentindo ainda em si picadas desagradáveis, não as dos mosquitos ao redor, mas tão somente aquelas provocadas por um colossal sentimento de culpa, mais profundo mesmo que aquele fétido pântano
Naquele desconfortável momento de choro e ranger de dentes, muitos bichos revoltados gritavam: "Vaca Malhada estúpida, Vaca Malhada imbecil...", ao mesmo tempo em que lamentavam do fundo de suas almas não terem dado crédito aquela Anta Letrada, amável e humilde.
Para aumentar ainda mais o desconforto geral, soprou um vento que trouxe em abundância a primeira chuva da primavera; desgraçada chuva para a Vaca Malhada, maravilhosa chuva para a Anta Letrada.
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