O homem e o menino
Guaçatonga |
Era uma vez um menino que deitou-se em seu canto no quarto de costura de sua mãe para dormir, e ali ele adormeceu. No dia seguinte o menino jogou bola no campinho, sob a sombra frondosa das mangueiras, corria, chutava, divertia-se muito com os seus amigos, o menino amava jogar futebol. Um homem sentado próximo ao campo observava atentamente aquele menino, na verdade procurava por ele a longos anos. O menino era muito magro, comprido, quieto, um semblante preocupado talvez. O jogo terminou, a meninada se dispersou, cada um para sua casa, o menino passa, olha para o homem que o cumprimenta com simpatia e passam a caminhar juntos, passo a passo, lado a lado, o menino não sabia explicar o porque, porém, sentia uma grande simpatia por aquele homem, talvez, quem sabe pudesse ser um parente distante, ele tinha tantos parentes, ou um amigo de sua mãe, ou de seu pai, ou quem sabe ainda um amigo de um de seus irmãos, o menino simplesmente sentiu-se muito à vontade e caminharam juntos em direção à sua casa. O menino não faz perguntas para o homem, não pergunta quem ele era e de onde havia vindo, para onde estava indo, simplesmente sentia-se muito bem em sua presença, aquela pessoa era de certa forma muito familiar para ele.O menino chega à sua casa, para no portão, abre-o e convida o homem para entrar, passando por entre os coqueiros, em direção aos fundos do quintal. E o homem passou pelo Camborde o vira lata da casa, e este, quando o viu alegrou-se, aproximou-se dele pedindo carinho, e o homem fez carícias no cachorro e depois foi seguindo o menino, e este foi mostrando a ele o seu mundo, mostrou o galinheiro que ele mesmo havia construído, falou de suas galinhas, todas elas com nome, apontou para as galinhas carijós, as brancas, as pretas, as amarelas, um monte de galinhas, todas tão amadas e bem cuidadas, era o responsável pelo cuidado delas. Depois o menino falou do cachorro vira lata, disse que ele havia vindo do Norte do Espírito Santo, quase na divisa com a Bahia, disse que gostava muito dele, que cuidava dele também, e que a casa onde ele morava havia sido feita por ele, falou que a casa era grande, e que, de vez em quando, entrava dentro dela para brincar com o cão. O homem ouvia tudo com muito interesse, carinho e atenção, e o menino foi sentindo-se menos acanhado e mais expansivo, falando para o homem do seu mundo, e da sua vida. O menino levou o homem para o quintal, mostrou para ele as árvores que lá existiam, o pé de ameixa, as goiabeiras, os pés de caqui, mostrou diversas bananeiras e muitas outras plantas, e lá nos fundos do quintal, bem no limite, num lugar alto, mostrou um pé de guaçatonga, e disse para o homem, que muitas vezes, no final do dia, início da tarde ia até aquele ponto e subia naquele árvore, e lá ficava até ao anoitecer. Depois o menino levou o homem para um monte de areia, e ali eles brincaram bastante com os brinquedos de madeira feitos pelo menino, e depois construíram juntos casinhas feitas de barro e pedaços de tijolos, e jogaram bolinha de gude, e rodaram pião, e brincaram de arco e flecha, e em seguida o homem juntamente com o menino deram milho para as galinhas e varreram todo o quintal. E então o menino convidou o homem para entrar em sua casa, e mostrou para ele sua lata cheia de soldadinhos que ele comprava na venda do Seu Lobo, e o menino e o homem brincaram muito tempo com aqueles soldadinhos, e depois o menino mostrou para ele os seus jogadores de botões, eram muitos os botões, e os dois passaram muito tempo naquele campo improvisado no taco negro e bem encerado, disputando partidas de futebol de botão. E o menino estava com fome, e convidou o homem para ir até a cozinha, e lá tomaram juntos café com bolo e pão, sentados em volta de uma mesa de madeira construída pelo avô do menino, e forrada com uma toalha quadriculada nas cores azul e branco, e o menino disse ao homem que gostava muito de bolinho de chuva, porém, naquele dia a sua mãe não havia feito, e desta forma, ele não poderia oferecer para ele. E o homem pediu ao menino para que falasse de seus sonhos, e o menino falou que quando crescesse desejaria ser quem sabe, bombeiro, ou trabalhar em um banco, disse ao homem que achava as agências bancárias muito bonitas, que muitas vezes ia até elas para pagar contas, a pedido de sua mãe, ou que poderia ser também um guarda florestal, pois ele gostava muito das florestas, e ele então mostra para um homem um gibi onde havia um guarda florestal canadense com um chapéu, tomando conta de um montão de árvores, e ele ficava encantado com aquele guarda, com aquele chapéu e com aquelas árvores. Em seguida mostrou para o homem sua máquina de escrever, uma Olivetti Lettera 32, presente de sua mãe, e ai o homem pediu para ele escrever alguma coisa, e o menino disse que estava na escola aprendendo datilografia, e escreveu na máquina para o homem ler: "Eu tenho duas galinhas carijós, uma é a sucuri, e a outra é a sucurina", e o menino disse que era importante para ele aprender datilografia, que segundo sua mãe aquele conhecimento poderia ser útil para ele no futuro, e aí o menino falou que na casa não tinha televisão nem geladeira, e que de vez em quando ele ia na casa de sua tia para assistir a algum filme ou jogo de futebol, porém a imagem não era boa, e a televisão chiava muito. E o menino falou que o pai estava viajando para longe, e que numa de suas viagens ele trouxe um refrigerante gostoso em uma garrafa com rolha, e que o refrigerante era muito bom, e que eles e os irmãos beberam tudo, porém, havia sido somente uma vez. E o menino sentia muito a falta de seu pai que estava sempre viajando, e falou para o homem de seus primos, de sua avó e tias que moravam perto, de como gostava de chupar mangas no verão, e tomar banho de chuva, e mostrou para o homem toda a casa, mostrou para ele seu irmão, suas irmãs e sua mãe, e o menino sentia que o homem ficava encantado com aquilo tudo. E o menino contou que havia nascido com os pés tortos, e que durante muito tempo usou botas especiais, e que estas eram feitas no Rio de Janeiro, e que ele ia ao Rio com a mãe uma vez por ano, e que lá ele havia visto o mar, e o mar era bonito, era azul e branco e balançava o tempo todo. E o tempo foi avançando, e o homem convidou o menino para dar um passeio, e os dois foram andando em direção ao pé de guaçatonga nos fundos do quintal, e lá o homem abriu um portão, e convidou o menino para passar, e o menino passou, e de repente eles estavam na frente de um outro portão que foi aberto pelo homem, e era uma outra casa. E o menino entrou, e na casa o menino viu seis cachorros, e todos eles gostaram do menino, e o menino conheceu e gostou do Billy, do Tição, da Nina, da Alegria, da Miúda e da Jully, e o menino rolou no chão com os cachorros, e depois o homem levou o menino para os fundos do quintal e lá o menino viu milhares de árvores e ficou encantado, e o menino percebeu que aquele homem cuidava daquelas árvores, e naquele dia o menino ajudou o homem a plantar mais uma porção delas, o menino era trabalhador e o homem também, e juntos plantaram muitas e muitas árvores. E o menino viu que naquela floresta plantada pelo homem também havia um pé de guaçatonga, na verdade haviam inúmeros deles convivendo com tantas outras árvores, e o menino achou bonito. Depois o homem chamou o menino para passear no carro, o menino ficou admirado, o carro do homem era mais bonito que o carro do Damião da bola de capotão, e o menino passeou pela cidade e percebeu que conhecia aquela cidade de algum lugar, parecia de alguma forma ser a sua cidade, porém haviam mais casas, mais pessoas, mais ruas, tudo era muito grande, havia menos verde, menos horizonte, e o carro andava e o menino ficava encantado olhando o homem dirigir, ele passava a primeira, a segunda, a terceira marcha, até parecia o seu pai, e o menino passou por uma ponte sobre um rio, e reconheceu aquele rio, era o Paraíba, e ficou triste, pois o rio estava com pouca água e muito sujo, e depois o carro estava numa rodovia e o carro corria, e agora ele via o mar, como era grande e bonito o mar, e o homem ia mostrando para ele as paisagens e as cidades e ele sentia-se fascinado. E então o homem o levou a um lugar muito grande, e lá eles entraram em um veículo imenso, e o veículo corria muito, muito, e em determinado momento o veículo começou a voar, voar como um pássaro, e então, lá de cima, o menino viu o mar, viu cidades, vales, serras, desfiladeiros, fazendas, florestas, nuvens, viu uma infinidade de coisas e conheceu um sem número de cidades e pessoas, e os olhos do menino brilhavam de tanta alegria e deslumbramento. E agora o menino via o homem trabalhando em um banco, com paletó e gravata, e depois via o homem andando por avenidas de grandes cidades, andando de ônibus, de barca, de trem, de metrô, de avião, viajando daqui para lá e de lá para cá...E o tempo foi passando, e o homem levou o menino de volta para a casa no alto do morro, a casa dos seis cachorrinhos, e o menino estava com fome, e o homem convidou o menino para entrar, e dentro da casa o menino viu uma moça bonita de olhos verdes, e a moça ofereceu para ele bolo com café, e o menino comeu satisfeito, e o menino gostou da moça, e a moça mostrou para ele a geladeira, naquela casa tinha geladeira, que legal, pensou o menino, e o menino abriu a geladeira e lá dentro tinha frutas, tinha refrigerantes que ele nunca havia experimentado, tinha tanta coisa. E a moça de olhos verdes ofereceu, e ele aceitou, e tomou coca cola, tomou guaraná, tomou fanta, tomou grapette, tomou tudo, e comeu maçã, chupou laranja, comeu pera, chupou uva, comeu de tudo um pouco, achou tudo encantador, e o homem levou o menino para assistir televisão, e a imagem era bonita, tinha cores, muitos canais e não chiava, e o menino assistiu muitos filmes, futebol, desenho animado... E o menino viu na casa dois jovens grandes e simpáticos, e os jovens gostaram tanto dele, e ele também gostou dos jovens, era tudo tão familiar, ele sentia-se como se estivesse em sua própria casa, e então ele viu uma máquina parecida com sua Olivetti Lettera, porém era mais moderna, tinha um visor, como se fosse uma televisão acoplada a ela, ele percebeu que o homem escrevia naquela máquina, e ele se aproximou e pediu ao homem para escrever alguma coisa, e o homem escreveu: "menino, o vento está chegando, solte suas velas e veleje pelos mares de sua emoção, não tenha medo, você será muito feliz", e o menino percebeu que o homem conhecia bem a arte da datilografia, pois digitava muito rapidamente e com precisão, sem erros. E o homem falou para o menino que havia plantado toda a floresta dos fundos do quintal, e que ele era o responsável pela manutenção dela, muitas vezes fazia proteção para evitar o fogo, e circulava sempre por lá, ele era de certa forma um guarda florestal e um bombeiro florestal também, e o menino achou bonito, e o homem levou o menino até um guarda roupas e lá mostrou para ele um chapel canadense igual aquele do gibi, e o menino olhou o chapéu, colocou na cabeça e ficou tão feliz, e o homem falou para o menino que o chapéu era presente do seu filho que havia andado lá pelo norte do continente, lá onde habitam os ursos, e nos olhos do menino brotaram lágrimas de tanta alegria. E o menino gostou de tudo, ficou maravilhado com todas as experiências vividas naquele dia. Estava chegando a hora de ir embora, e o menino, na sua simplicidade, pede à moça de olhos verdes, olhos que refletiam o infinito, para quem sabe, levar um pedaço de bolo de chocolate para sua mãe e para o camborde, e a moça solícita e feliz embrulha carinhosamente em um guardanapo branco um pedaço do bolo, e o menino vai se despedindo dos meninos e se despede dos cachorros também, de um por um, e vai caminhando com o homem que vai levá-lo de volta para a sua casa. E o homem aproxima-se do portão abre-o, andam mais um pouco juntos e agora chegam em outro portão que também é aberto, e lá estava o quintal do menino com o seu pé de guaçatonga. Estava na hora da despedida, e pela primeira vez o menino faz uma pergunta: Homem, quem é você? E o homem olha para ele e responde: Menino, eu sou o que você será um dia, tudo o que você viu e viveu no dia de hoje é construção sua, fruto do seu esforço. E então o menino faz a segunda pergunta: E porque você veio me visitar? E o homem responde: Vim porque sentia uma infinita saudade de ti, e desejava tanto dar a você um dia como o de hoje, com muitas alegrias e descobertas, e também para pedir a você que jamais me abandone, que com sua força e juventude não me deixe jamais fraquejar quando os anos vividos baterem em minha porta. E o homem e o menino se abraçam, e o abraço era tão forte, tão sincero, tão afetuoso, que depois disto era impossível distinguir quem era o homem e quem era o menino. E o menino acorda em um canto lá no quarto de costura de sua mãe. Recorda-se de um sonho com lugares diferentes, um carro mais bonito que o do Damião, um sonho com árvores, chapéu de guarda canadense e uma moça bonita com olhos verdes que refletiam o infinito. Que sonho bonito pensou o menino, parecia ter sido tudo tão real. O menino olha para o lado da cama, e lá encontra dentro de um guardanapo bem branquinho um pedaço de bolo de chocolate. Quem havia deixado aquele bolo ali, talvez, quem sabe, um de seus irmãos. Ele come um pedacinho, estava uma delícia, leva um pedaço para sua mãe, sabia que ela iria gostar, e separa também uma parte para seu amigo, o camborde. Depois, senta-se na cadeira e começa a treinar na sua máquina de datilografia, queria tanto escrever com rapidez e precisão, e ele escreve: "Era uma vez um homem que morava em um casa no alto de um morro. O homem gostava de plantar árvores, e na casa dele tinha um pé de guaçatonga, um chapéu de guarda florestal, uma porção de cachorros, e uma moça bonita de olhos verdes que sabia fazer bolo de chocolate".
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