A Última Pipa
A maioria das crianças gostam de soltar pipa, é algo prazeroso, e comigo não foi diferente, desde menino aquelas engenhocas voadoras e coloridas me fascinavam. Não sabia como fazê-las, de forma que passei muitos anos dependendo de alguém que fizesse para mim, ajudava da forma que podia, ora trazia o bambu, ou o papel de seda, ora fazia a rabiola e ia levando, achava que era incapaz de fazer uma pipa com qualidade, grande e bem equilibrada, pois se não houver o perfeito equilíbrio aerodinâmico, a pipa não sobe, a pipa não voa. Gostava de soltar minhas pipas solitariamente, geralmente nos dias de outono, bem cedo, quando havia vento, nestes dias subia nos morros e ficava por lá por muito tempo, como era bom. Entre as crianças existe uma espécie de competição, você solta a sua pipa e não demora muito, muitas outras pipas vão se aproximando, o objetivo é fazer a pipa do adversário literalmente ir para os ares, voar, isto ocorre porque os meninos passam cerol na linha (uma mistura de cola de madeira com vidro moído), a mesma fica cortante, e em contato com outra linha, uma acaba cortando a outra. Não gostava deste tipo de competição, não sei se por medo de perder minha querida pipa, ou se simplesmente não sentia interesse de participar destas disputas. E assim foi por toda a minha infância, até lá pelos meus 15, 16 anos, soltava sempre minhas pipas sozinho, e estas eram sempre feitas por terceiros. Mas um dia, algo de incomum aconteceu, não sei qual a explicação, nunca achei uma resposta. Acordei e decidi que faria a minha própria pipa. Fui ao armazém, comprei papel de seda azul, linha 10, a melhor das linhas, comprei cola de madeira, quebrei um vidro transparente, consegui bambu, e finalmente preparei a minha pipa, a primeira e única feita por mim em 15 anos. A pipa era toda azul, grande, bonita, fiz uma boa rabiola, moí o vidro e preparei o cerol, estiquei um bom pedaço da linha para aplicá-lo, e ficou tudo pronto. Tinha uma boa pipa, uma boa linha cortante e resolvi sair para soltar, não nos morros solitários onde soltava até então, mas lá no meio da garotada, no quartel general da disputa, em um local onde havia sempre aquele tipo de competição, onde o objetivo principal era mandar para os ares a pipa do adversário. Cheguei lá, era inicio da tarde, não sentia nenhum temor, estava solto, e algum tempo depois quem estava solta e voando bem alto era a minha pipa azul, subiu direitinho, voava bem, havia sido bem construída, era a minha pipa, estava muito orgulhoso. Não demorou muito e a pipa do primeiro adversário apareceu para o combate, depois de algum tempo minha pipa ficou no ar, e a outra foi para os ares, e veio outra, e a outra também eu mandei para os ares, e foi assim,sucessivamente até o final da tarde, quase anoitecer, naquele dia todas as pipas que passaram pelo meu caminho haviam voado até aquele momento. No final restava somente a minha pipa e uma outra, a última, que avançou em minha direção para o combate final. Eu poderia ter sido o grande vencedor do dia, porém, meu adversário me venceu, lembro-me ainda, como se fosse hoje, de ver a minha linda pipa azul indo para os ares no finalzinho do dia, início da noite, e eu segurando a linha sem vitalidade em minhas mãos. Não fiquei triste, estava muito contente, fui para casa, daquele dia em diante não soltei mais pipas, somente muitos anos depois, já com os meus filhos. Para mim aquele dia ficou como um marco entre minha infância que estava terminando, e uma nova fase mais adulta que estava para começar, e posso dizer que aquele dia em que eu não tive nenhum medo, nenhum temor, foi um dos dias mais felizes de toda a minha vida. Ainda hoje, muitos anos depois, ainda vejo a pipa azul voando, voando no céu de outono, livre, solta, sem dono, provavelmente voará por toda a eternidade.
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