O Forte Apache

A infância do menino foi muito pobre, brinquedos ele quase não tinha, não havia dinheiro para isto. Brincava com latas que transformava em carrinhos, com pedaços de ripa de madeira que fazia virar um guindaste, com vassouras velhas que viravam cavalos, com os quais cavalgava contente pelo quintal, mas sobretudo, brincava com uns bonequinhos de plástico bem vagabundos e baratinhos que ele adquiria quando comprava balas na venda do Seu Lobo, e estes soldadinhos ordinários, ele amava com toda a grandeza do seu coração. Haviam índios americanos, soldados da cavalaria , guerreiros vikings, índios brasileiros, soldados da Segunda Guerra Mundial, guerreiros medievais e um sem número de bonequinhos de todas as cores e matizes, bem pequeninos, alguns disformes, porém, todos eles muito amados. Um destes soldadinhos possuía o nome de chefe King, era feio de doer, o menino gostava tanto dele, era o seu preferido, e este ele encontrou em um monte de entulhos. O menino brincava com eles diariamente, geralmente à tarde, início da noite, ia para um canto do quarto de costura de sua mãe, e ali, enquanto ela costurava, e como costurava bem sua mãe, ele brincava com os seus "indinhos" tão amados. Armava batalhas entre eles, fazia moradias nas frestas dos cobertores, conversava, como em um teatro de marionetes, passava muitas horas nesta atividade, em suas batalhas imaginárias entre aqueles entes de plástico, os índios sempre venciam os brancos, eram os heróis, e ele nunca soube o porque disto, naquela época, quando ia ao cinema assistir aos filmes do velho oeste americano, tão comum nos anos 60, os índios eram sempre os vilões, e os brancos sempre venciam as batalhas. Muitas vezes, quando ia tomar banho, levava alguns destes soldadinhos com ele, e ficava um bom tempo debaixo do chuveiro brincando com seus amigos de plástico. No final da brincadeira, todos eles eram guardados em uma lata retangular que ele ganhou de sua mãe, no passado utilizada para guardar linhas, agulhas, tesouras, dedais e outros artefatos das costureiras, todos os seus amigos cabiam naquela lata. No seu universo, o menino não sentia-se infeliz por brincar com coisas tão simples, porém, como todas as crianças de sua idade, sonhava com bicicleta, com autorama, com velocípede, com carrinhos bonitos que ele via nas lojas, e outras coisas mais. O menino gostava de trabalhar, sempre que possível, carregava tijolos e telhas nas obras perto de sua casa, vendia bananas, verduras, esterco de boi que ele ia buscar nos pastos próximos, de forma que, era comum ele possuir algum dinheirinho, e desta forma conseguia comprar suas balas com seus bonequinhos, seus pirulitos, drops  dulcora e outras coisas mais. Lá pelos seus 11 anos ele começou, no seu período das férias de verão a vender picolés, saia cedo de casa, ia até a sorveteria lá no bairro 208, recebia uma caixa de isopor com 20 ou 30 picolés, e saia pelas ruas próximas, caminhando, oferecendo o seu produto. "Olha ê o picolé" gritava o menino, enquanto andava com sua caixa de isopor a tiracolo, oferecendo os vários sabores disponíveis (coco, limão, amendoim, creme holandês, abacaxi, ...) e andava bastante para realizar as vendas, terminadas  estas, voltava para a sorveteria, fazia o acerto com o dono, e recebia a sua parte pelo trabalho, voltando para sua casa contente, e às vezes ainda dava tempo de ir ao campinho debaixo das mangueiras para jogar uma "pelada". E o verão foi passando, e ele andando e vendendo os seus picolés, até que em determinado dia, ele passou pela frente de uma loja e ai seus olhos brilharam quando ele olhou para a vitrine e viu um lindo forte apache, grande, todo de madeira, bem construído, com um sem número de soldados, índios, carroças, cavalos, cabanas, os bonequinhos todos bem pintados, bem definidos, saudáveis, bem diferentes dos seus, daqueles que ele guardava na lata de costura e que ganhava de brinde quando comprava suas balas. O menino olhou o preço, percebeu que não era barato, não tinha dinheiro para a compra, olhou ainda mais uma vez com os olhos brilhantes, deu meia volta e seguiu o seu caminho, porém, daquele dia em diante, sempre que ele passava por aquela rua vendendo seus picolés, dava uma esticadinha até a loja, e lá ficava alguns instantes namorando o forte apache. E ai, nasceu um pensamento na cabeça do menino, fez lá os seus cálculos, e percebeu que se ele guardasse todo o dinheiro da venda dos seus picolés naquele verão, seria possível, quem sabe, comprar aquele forte e levar para a sua casa, a empreitada não era de todo impossível. E, determinado com era, assim ele fez, foi vendendo, vendendo, guardava o dinheiro na gaveta do guarda roupa e frequentemente ia contando, para ver o quanto faltava. E o tempo foi passando, e ele, frequentemente olhando na loja o seu objeto de desejo, e vendendo os picolés, e juntando o dinheiro, e contando o dinheiro, e assim o verão acabou, e lá pelo início do mês de abril daquele ano, o menino todo feliz, descobriu que havia dinheiro suficiente para comprar o forte, que alegria, ele havia conseguido. Agora poderia ir à loja e comprar o brinquedo, não falou nada com os irmãos, nem com a mãe, nem com ninguém, quando ele chegasse em casa com o produto, faria uma surpresa para todos, tudo aquilo seria fruto do seu esforço pessoal, e a surpresa para os familiares ficaria para o final. E assim ele fez, à tardinha, pegou o dinheiro na gaveta, contou mais uma vez, contou pela milésima vez, estava certinho, ainda sobraria algum, saiu de casa leve como um passarinho e foi pelo caminho fazendo os seus planos de como seria brincar com aquele forte tão bonito, andava rápido, o coração disparava, era movido pela alegria e ansiedade, virava uma rua, descia outra, subia um morro, descia outro e já estava quase chegando na loja, está perto a loja, pensava ele, no final do percurso, quase corria para chegar, e foi chegando e chegou, olhou para a vitrine e levou um susto, o que havia acontecido, o forte não estava lá. Um pouco apreensivo, entrou na loja, e perguntou ao vendedor pelo forte, e este lhe respondeu que aquele era o único do estoque, e que havia sido vendido. Agora o menino volta para casa, as lágrimas correm pelos seus olhos, sobe morro, desce morro, vira uma rua, vira outra, carrega um grande pesar dentro do peito, o seu querido forte apache havia sido vendido, vai começando a escurecer, chega em sua casa e não comenta nada com ninguém, não compartilha o seu drama interior. Toma seu banho, janta e vai para o quarto de costura onde estava sua mãe, ali abre sua latinha e vai pegando um a um os seus soldadinhos baratinhos, os seus inesquecíveis amigos de infância, e para cada um deles vai partilhando sua dor, somente para eles conta o que aconteceu, conta também, que, se o forte apache chegasse, eles não seriam dispensados das brincadeiras, não ficariam esquecidos em um canto qualquer, mas que passariam a morar naquelas belas cabanas dentro da fortificação, juntamente com aqueles soldadinhos tão bonitos e tão reluzentes com os quais ele havia sonhado e trabalhado para adquirir durante todo um verão, vendendo seus picolés. E naquela noite seus amigos o confortaram, e eles brincaram muito, até tarde, foram muitas as batalhas, muitas as lutas, e no final, cansado, o menino dorme, e em seus sonhos, desde então e até os dias de hoje, o menino sonha com aquele forte, com aquele forte apache.

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