Os Negros Tempos dos Dragões

Estou ouvindo uma música, que coisa agradável... parece algo comum ouvir uma música, parece algo comum sentir a melodia entrar e embalar o coração; parece algo comum deliciar-se com a mensagem transmitida pela letra, parece...

Ouve um tempo em que eu não conseguia ouvir músicas, ouve um tempo em que eu não conseguia compreender as letras; ouve um tempo em que meus olhos estavam cegos e meus ouvidos estavam surdos, e eu, como um carcerário da doença da codependencia, vivia diariamente dentro de minha prisão. 

Minha prisão era tão aguda, que não conseguia perceber quase nada do que ocorria no mundo exterior — dificuldades para olhar, para ouvir, para falar, para chorar, para expressar, para sentir... Sentia e vivia apenas o mergulho constante no medo, na angústia, na autopiedade, na solidão, no silêncio, na vergonha de ser e existir —  muito ruim e deprimente este tempo.

Lá pelos vinte anos, na época da universidade, para fugir um pouco da dor, comprava e lia todo o jornal — economia, política, esportes, coluna social, variedades, classificados... Enquanto lia e mergulhava na miséria e nas dores dos demais, tentava desesperadamente entorpecer a minha própria dor, mas quando terminava a leitura, a dor voltava, e então eu não tinha mais jornal para ler, mas tão somente a minha dor para sentir. 

Lido o jornal e com a dor ainda presente, e ainda com algum tempo, eu saia pelas ruas e andava... andava quilômetros, andava até cansar, andava até ficar bem longe de casa — como se a distância pudesse mitigar a minha agonia. Depois de muito andar e tendo finalmente voltado, já bastante cansado de tanto ler, andar e pensar, eu finalmente tomava um banho, deitava e dormia. Dormia para fugir do pesadelo que era o fato de estar acordado; não dormia para descansar, dormia para fugir da vida que era detestável para mim.

A questão é que no dia seguinte estava acordado, e então tudo começava novamente. Então eu lia livros, muitos livros; os livros legaram-me muitos conhecimentos, mas não a liberdade. Neste período da vida eu já tinha mais de vinte anos, e uma namorada poderia muito ajudar-me a sair daquele constante estado mental de desespero calado, fossa e solidão  assim pensava eu. 

Mas como eu conseguiria uma namorada, como? Eu tinha medo de todas as pessoas, e tinha também medo das mulheres, de todas elas. O que diria para uma namorada caso viesse a encontrar alguma, o que diria? Muitas vezes saia pelas noites à procura desta "namorada" maravilhosa que pudesse me salvar, levando-me para um belo castelo cheio de paz e majestosos jardins. Ah... como eu seria feliz no castelo com a minha namorada, lá tudo seria perfeito e sem problemas; eu amaria intensamente a namorada do castelo encantado, e seria então, finalmente, feliz para sempre. 

Quem achou que encontrei a namorada do castelo encantado das minhas fantasias errou. Depois de andar pelas praças, parques e jardins, praias, cinemas, ruas, avenidas, teatros... depois de andar até os confins do mundo ao encontro da amada, não conseguia encontrá-la; voltava então triste para casa abraçadinho, não com a namorada das minhas fantasias, mas tão somente com o dragão da minha realidade. 

Um dia conclui que não tinha namorada por não ter emprego, dinheiro e carro; como uma garota iria namorar um sujeito nestas condições, como? Então voltei-me para os livros e a solidão, e disse para mim mesmo: "Amigão, economize as solas de seus sapatos e segure as pontas; quando você terminar a faculdade e começar a trabalhar, vai chover garotas na sua vida."

Através dos livros veio trabalho, carro e dinheiro. Estava agora pronto para as grandes conquistas amorosas  seria o Dom Ruan moderno. Havia finalmente chegado o meu tempo de namorar todas as moças bonitas da cidade  como existiam moças bonitas. 

Queimei tanques de gasolina, voei muitas centenas de quilômetros no bojo dos grandes aviões, hospedei-me em bons hotéis, fiz inúmeras viagens, fui mesmo até o exterior em busca da namorada encantada, e nada, nada... No retorno para casa, na bagagem, tão somente o meu já conhecido dragão da solidão, o meu dragão da codependencia.

Ouve um tempo em que não conseguia ouvir a música, ouve um tempo em que eu não conseguia compreender a vida... Tudo isto foi nos negros tempos dos dragões, dezoito anos antes da mensagem de 12 Passos bater amorosamente às portas do meu coração. Não escrevo isto como um desabafo, ou ainda para revelar para quem lê o quanto já sofri nos meus cárceres mentais, não, não...

Escrevo para dar o meu testemunho pessoal que, através dos 12 Passos em minha vida tudo mudou para melhor, tudo... não existem mais tantos dragões, não existem mais namoradas encantadas; não existem mais tanta solidão, tanto abandono e autopiedade; não existe mais de forma certa um futuro escuro e incerto, não existe mais um homem tão mergulhado na ignorância e no egoísmo, construindo castelos de ilusão no ar, não, não... 

Existe tão somente agora um homem tentando sincera e honestamente viver um dia de cada vez, caminhado, não só,  mas amparado pelo seu amoroso Poder Superior, por uma venturosa estrada de 12 Passos, estrada esta que através de minha prontificação pode efetivamente conduzir-me a maravilhosas pousadas reais de paz e serenidade, onde não pousa nenhum dragão alado cuspindo o fogo do inferno, mas unicamente os encantados e pequeninos passarinhos do céu — plantei milhares de árvores para eles , com seus cantos de paz, alegria e esperança. 

Se lugar de dragão é na caverna, eu morei muitos anos na caverna do dragão  eventualmente ainda vou lá.

Esforço-me para praticar os 12 Passos e afugentar os meus dragões. Só por hoje serei feliz.











Comentários

  1. Sua disciplina e persistência, foram e ainda são ferramentas muito importantes para sua jornada vitoriosa!
    Conhecer exemplos de sucesso, nos dá esperança e aumenta a disposição de continuar fazendo o possível. E confiar na Graça de Deus!

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  2. Nossa!!!..*eu tento começar o comentário com outra palavra,mas ñ encontro nada q exprima melhor o q acontece no meu emocional,quando leio seus relatos (é assim q me soam suas escritas,como relatos,embora sejam suas mais profundas e verdadeiras histórias)..
    E q,tb pra mim,são fontes de inspiração pros meus dias atuais..*pelo simples fato de serem relatos de superação..
    Algo q,além da emoção q me causa (de profundo respeito e admiração),tb alimenta meu espírito,de sentimentos verdadeiramente humanos..
    E me fazem refletir sobre minhas próprias capacidades..*ñ só de reflexão..*mas tb de ação..
    Muito Grata!!!..*por começar bem melhor o meu dia!!!..Abçs..

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