O Moço das Letras e as Sete Crianças Rebeldes
Começava a cair a tarde sobre o Bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro. Naquela quarta-feira fria de inverno, com vento e garoa, o Moço das Letras começou a aprontar-se para ir à reunião de 12 passos. Naquelas suas idas às salas, era comum a companhia de sua Criança Interior — ela amava as reuniões — porém, ela ainda não havia aparecido até aquele momento.
Quando calçava os seus sapatos, apareceu finalmente uma criança, mas não era sua Criança Interior, era uma outra.
— Boa noite Moço das Letras — falou a criança.
Quando calçava os seus sapatos, apareceu finalmente uma criança, mas não era sua Criança Interior, era uma outra.
— Boa noite Moço das Letras — falou a criança.
— Boa noite criança; você não me é estranha, mas creio que não a conheço.
— Conhece sim Moço, conhece sim... Você possui apenas uma Criança Interior, recém descoberta, porém ela não está por aqui hoje, então resolvemos aparecer. Sou uma de suas crianças rebeldes.
— Crianças rebeldes? que trem é isso?
— Até você descobrir sua Criança Interior Moço, era conosco — as crianças rebeldes —, que você convivia. Hoje sentimos sua falta, então resolvemos visitá-lo a fim de matarmos um pouco as saudades.
— Não chegou em uma hora adequada criança rebelde; estou saindo agora para uma reunião.
— Por favor Moço das Letras, não vá, não vá.
Enquanto a criança rebelde dizia para o Moço das Letras não ir, chorava, batia os pés, e rolava pelo chão com os olhos transbordando de lágrimas.
— Quem é você afinal de contas criança rebelde?
— Sou a sua criança Birrenta Moço das Letras. Esqueceu de mim?
— Veio em péssima hora criança, mas pode continuar aí na sua birra, e por gentileza, continue rolando pelo chão. Estou precisando mesmo passar um pano nele, pois a senhora que faz a limpeza não veio hoje, e acho que você poderá mesmo ajudar-me. Passe bem!
O Moço das letras terminou de amarrar os sapatos, e quando estava prestes a levantar-se, apareceu outra criança.
— Por favor Moço das letras, fique hoje, fique... está prestes a cair uma chuvinha fina e fria. Temos hoje a estréia de uma série na televisão, um espetáculo! Deixe a reunião para outro dia companheiro.
— Quem é você?
— Sou a sua criança Preguiça.
— Sinto muito Preguiça, mas eu vou à reunião. O sofá e o controle remoto estão aí à sua disposição. Divirta-se, mas eu tenho uma série de coisas mais importantes do que a série da TV para fazer.
Mal o Moço das Letras deu um passo, apareceu outra criança rebelde, toda vestida de preto, com um profundo semblante carregado de melancolia, que só de olhar entristecia o coração.
— Melhor você ficar em casa; não adianta nada ir lá, você sabe que não adianta... Fique aqui comigo pensando na vida; podemos assistir a série com a Preguiça, e ainda darmos um pouco de atenção para o Birrento. A pipoca é por minha conta.
— Meu Deus do céu... quem é você?
— Sou sua criança Angustia, e brincamos juntos por muitos e muitos anos Moço das Letras. Fui sua companheira quase inseparável por mais de quarenta anos, ouvimos juntos muitas músicas tristes, e hoje resolvi fazer uma visita, amizade antiga amigão.
— Sinto muito angústia, joguei o velho toca disco fora. Acabou a brincadeira, fim da linha para você; vá ouvir músicas nostálgicas com outro, pois agora eu tenho mais o que fazer. A propósito, o cemitério São João Batista fica aqui pertinho. Acho que você ficaria muito à vontade lá nestes trajes fúnebres. Estou a caminho de uma reunião de 12 passos, e, por favor, não me acompanhe.
Caminhou mais dois passos em direção à porta, e novamente deparou-se com uma outra criança rebelde, com um aspecto que só de olhar despertava compaixão — que sofrimento aquele.
— Ah... por favor, não vá à sala, não vá... Ficarei tão desprotegida e sentirei muita a sua falta. Coitadinha de mim... Não suporto a Angústia, a Preguiça é detestável, e esta criança Birrenta irrita-me ao extremo. Ficarei mal acompanhada, com frio e fome, e você não estará aqui para cuidar de mim. Que sofrimento Senhor da vida, que sofrimento...
— Quem é você criança rebelde?
— Sou a sua Autopiedade Moço das Letras. Esqueceu de mim?
Enquanto falava a última frase, chorava copiosamente a Autopiedade.
— Você não veio em boa hora Autopiedade, estou de saída!
Então, de forma muito natural, o Moço das Letras pegou um lenço de papel sobre a mesa e o entregou para a criança rebelde.
— Chore em paz e passe bem! Preciso partir pois a hora avança.
Então, de forma muito natural, o Moço das Letras pegou um lenço de papel sobre a mesa e o entregou para a criança rebelde.
— Chore em paz e passe bem! Preciso partir pois a hora avança.
O Moço das Letras já estava terminando de atravessar a sala, bem próximo da porta da rua, e então — coisa mais incrível —, vindo do nada surgiu outra criança rebelde — a casa estava infestada delas.
— Você tem coragem de ir a esta reunião inútil e deixar aqui esta criançada sofrendo pelos cantos? Você é muito desumano, e agindo desta forma, jamais encontrará a alegria de viver, e certamente terminará os seus dias ardendo no fogo eterno do inverno. Por favor, não vá! Você precisa assistir televisão com a Preguiça, e cuidar da Autopiedade — coitadinha —, e olhe só o estado deprimente em que ficou a Angústia, e ainda o desconsolo daquela criança rolando pelo chão. Você não tem caráter, é frio, calculista e profundamente egoísta e desumano. Seu dever é ficar na sua casa nestes momentos tão críticos.
— Quem em você? — indagou o Moço das Letras.
— Sou a sua Culpa.
— Culpa escute: Sou responsável por minhas ações, e minha casa não é creche de crianças rebeldes. Faça-me um favor Culpa... Adote todas estas crianças infernais e cuide de cada uma delas. Acredito que desta forma você deixará de se sentir tão omissa e tão culpada. Desculpe-me a sinceridade, mas agora estou de saída.
Estava ele agora a dois passos da porta, quando surgiu à sua frente mais um dos pequenos rebeldes.
— Melhor você não ir hoje. Está escuro lá fora, e aqui no Rio de Janeiro tem assaltantes para todos os lados. Você deveria ser mais prevenido, e afinal de contas, mesmo indo lá, você não consegue mesmo ficar muito longe de mim, sou uma de suas crianças preferidas desde a sua infância; sou para você como um freio de mão puxado com o carro andando em quinta marcha. Fique só por hoje; assistiremos a série juntos, e como esta muito frio, eu providencio um cobertor bem quentinho, pode ser muito útil para você proteger-se do frio, e sobretudo, da realidade. Sempre fui o seu manto protetor.
— Por favor... tenha a bondade de apresentar-se.
— Sou o seu Medo Moço das Letras.
— Você perdeu a viagem amigo, perdeu a viagem... venho desenvolvendo a coragem, e agora não ando mais com tanta frequência em sua companhia. Tenha uma boa noite!
Finalmente ele havia chegado à porta, e já com a chave na mão, estava prestes a abri-la, então, uma outra criança rebelde surgiu em seu caminho. Era uma criança de uma beleza estonteante, e por um momento o Moço das Letras julgou mesmo ser a sua Criança Interior.
— Meu Deus, Minha casa virou uma creche! — Exclamou o Moço das Letras. Quem é você?
— Meu amigo, meu amigo... para que ir à reunião, para que? Olho para você e percebo nitidamente em seu semblante o progresso da sua recuperação — uma verdadeira transformação humana —, percebo o quanto você está mais leve, descontraído e bem mais equilibrado. Veja bem companheiro, veja bem... só por hoje, na verdade, para todo o sempre, você não precisa mais ir lá.
Largue de ser tolo homem de Deus, você já foi lá o suficiente, e alcançou finalmente, através de seus próprios méritos, um estágio de superioridade espiritual muito elevado. Seu lugar agora é nos grandes templos, com grandes plateias e sob a luz de grandes holofotes, levando a mensagem espiritual em alto e bom som para os quatro cantos do mundo. Não perca sua grandeza companheiro, e só por hoje, você não precisa mais ir àquelas salas minúsculas e anônimas nos fundos das igrejas... vá para a grandeza e o brilho do mundo amigo, vá para a glória e a fama, vá...
Então, ouvindo aquela voz doce e aveludada, pela primeira vez desde o menino birrento, nasceu a dúvida no coração do Moço das Letras.
— Quem é você afinal de contas?
— Ora Moço das Letras, sou o seu maior amigo e dispenso apresentações; fomos sempre tão unidos, que muitas vezes chegamos mesmo a parecer uma única pessoa. Nossa amizade vem de longa data.
— Por favor, apresente-se.
— Sou seu Orgulho, o legítimo procurador do seu egoísmo. Escute amigo, escute... tenho autoridade suficiente para oferecer-lhe uma infinidade de glórias mundanas. Você finalmente está pronto. Ouça-me e sirva-me. A chave está em suas mãos; abra agora as mundanas portas, e então, através de nossa amizade, você terá todo o mundo aos seus pés.
A tentação era grandiosa demais; naquele instante decisivo, o Moço das Letras fechou os olhos e pensou com todas as forças do seu coração em seu Poder Superior, conforme ele o concebia. Então, lá no mais profundo do seu ser, ele visualizou sorridente e tranquila a sua Criança Interior, que vinha em sua direção, e ao aproximar-se, falou com inequívoco amor e profunda ternura:
— Moço das Letras, a chave está em sua mãos; não abra mais as portas do mundo! Abra tão somente a porta de sua casa e vamos juntos à reunião.
A porta da casa foi aberta, e então todos as crianças rebeldes desapareceram com a manifestação da luz do fim da tarde; foi se embora o Moço das Letras pelas ruas de Botafogo, em direção à sua amada reunião de 12 Passos, sentindo-se tão leve como uma gaivota que ele avistava ao longe, em seu voo de paz e serenidade sobre a enseada de Botafogo.
Nossa!!!..*ñ tenho palavras pra dizer o quanto esse texto (relato) me preencheu por dentro!!!
ResponderExcluirAcabei de falar com alguém muito especial,sobre a importância de ir à sala..
Ñ só quando se está bem,pra compartilhar amizade,serviço,e companheirismo..
Mas principalmente quando avançamos um sinal (pra dentro de nossos mais obscuros paredões),e nos encontramos lá no meio..sem conseguir ver o fim do beco,e achando inviável o caminho de volta..*só restando mesmo a visão dos paredões..
Ñ argumentei muito,pra ñ parecer imposição da minha parte..e tb pq sinceramente fico desgastada quando tenho q fazer isso,com alguém q já me fez ouvir,mesmo despretensiosamente,vários argumentos nessa mesma direção..
Mas talvez seja o meu momento..de passar a experiência..
Ñ da solução da matemática dos paredões..*mas da certeza das impermanências..
De q esses paredões podem nos amedrontar,ou até nos fazer morrer de frio..*mas ñ podem nos arrancar a leveza por completo..
A menos q fiquemos parados lá..*sentindo frio..sozinho..
Sem abrir (gentilmente) essa Porta,q Vc acabou de descrever no seu gentil texto..
Q salvou a minha noite..*e reforçou meus pensamentos..
#Obrigada!!!
Nossa...
ResponderExcluirQue texto.
Uma benção. Luz.
Que texto lindo! Uma benção. Obrigada. Só por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida.
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