O Édito do Sal
Era uma vez, há muito tempo, lá no distante Reino do Sul dos Confins da Escuridão, o Reino do Sul, um pobre lavrador, que com sua pequena carroça, dirigia-se ao armazém geral, levando no seu interior uma pequena quantidade de grãos de girassol.
Havia no reino um príncipe chamado Zinho, que quando crescesse, herdaria o reinado governado pelo seu pai. Naquele tempo estava em vigor o Édito do Sal, promulgado pelo Rei Zão: "Para cada cinco arrobas de grão, uma arroba de sal".
Em direção aos grandes armazéns reais, chegavam diariamente carroças de todas as aldeias produtoras distantes: do norte viam os grãos de trigo e cevada, do oeste os grãos de milho e feijão, do leste grãos de arroz, do sul grãos de girassol, das aldeias do noroeste grãos de centeio...
No Reino do Sul, o sal era a principal moeda de troca, todo o seu comércio era controlado pelo Rei, e nos grandes armazéns reais, havia uma infinidade de sacas de sal. As grandes carroças entravam no armazém, deixavam lá o grão, e saiam com o equivalente em sal; era a economia do Reino do Sul em movimento.
Naquele tarde, andando pelos armazéns e observando a movimentação geral, Príncipe Zinho observou uma carroça que entrava quase vazia, com pouquíssimos sacos de grão, e então o menino ouviu o diálogo entre o condutor da carroça e o responsável pela pesagem dos grãos e a entrega do sal, na proporção de cinco por um.
- Mas Senhor, - falava o carroceiro, - tivemos uma grande seca este ano lá pelas bandas do sul, e nossa aldeia teve uma queda muito grande na colheita do girassol, de forma que, se fosse possível, precisaríamos levar mais algumas sacas de sal, comprometemo-nos a fazer o ajuste no próximo ano.
- Infelizmente não, - retrucou o almoxarife real - São ordens de Sua Majestade, preciso cumprir o édito do sal.
Os dois homens ficaram muito tempo conversando, mas não houve solução, e ao cair da noite, o carroceiro saia triste do armazém, levando em sua carroça uma minúscula quantidade de sal.
Quando a carroça começava a afastar-se do armazém, Príncipe Zinho, que estava próximo o chamou:
- Senhor, Senhor...
O carroceiro parou a carroça, olhou para trás e observou o menino que o chamava...
- O Senhor não está levando quase sal nenhum.
- Pois é menino, perdemos quase tudo, e agora, para piorar a situação, quase não teremos sal na nossa aldeia para adquirirmos outras mercadorias; passaremos por grandes dificuldades neste ano.
A situação do carroceiro tocou a sensibilidade do Príncipe Zinho, era difícil para ele compreender como uma carroça poderia sair vazia, com tantas sacas de sal estocadas no grande armazém. Um pensamento então passou pela sua cabeça, algumas sacas de sal não fariam falta...
- O Senhor me aguarde um minuto, - falou o Príncipe Zinho para o carroceiro.
O menino voltou à entrada do armazém, iria falar com o almoxarife real, mas como já havia escurecido, aquele não estava mais lá, bem como mais ninguém, o armazém estava completamente deserto.
Dentro do coração do Príncipe alguma voz dizia que o que ele faria naquele momento não era certo, outra voz dizia porém que era justo, e entre o justo e o errado, o príncipe optou pelo justo.
- Senhor, senhor, por favor, traga sua carroça até aqui.
O carroceiro retornou até a entrada do armazém, e lá, com a ajuda do menino, que apesar de pequeno era forte, colocaram algumas sacas de sal na carroça.
Lágrimas de gratidão rolaram dos olhos do carroceiro, que não sabia como agradecer.
- Menino, na próxima colheita devolveremos ao rei todo este sal, e saiba que eu e os de minha aldeia seremos eternamente gratos pela sua bondade.
Quem chorava agora era o Príncipe, que se despediu do carroceiro, e voltou para o palácio com a alma leve; estava bem escuro naquela hora, mas mesmo na escuridão, alguém passou por ali - era o alfaiate do rei - assistindo tudo aquilo, ficando mesmo surpreendido pela conduta do filho do grande Rei Zão.
No dia seguinte, logo pela manhã, enquanto vestia o rei, pela mais profunda necessidade de agradá-lo, e quem sabe conseguir uma promoção real, o alfaiate começou a revelar aquilo que na escuridão, não a da noite, mas a de sua alma, seus olhos presenciaram.
- Vossa Majestade...
- Sim, - falou o Rei Zão.
- O Édito do Sal ainda está em vigor?
-Sim, está!
- Vossa Majestade, preciso falar algo que me dói profundamente na alma, algo que muito me preocupou, uma cena que assisti ontem ao anoitecer...
- Fale então!
O alfaiate real, com requintes de detalhes narrou para o rei todo o diálogo entre o Príncipe Zinho e o carroceiro da aldeia do sul. Ao final do relato o monarca estava calado e de semblante muito fechado, e não falou absolutamente nada em relação aquilo.
Ao longo daquele dia o Rei constatou, através de seus rigorosos relatórios de entrada e saída do armazém real que, realmente faltavam algumas sacas, mais precisamente quatro. O monarca ficou ainda mais fechado, e no seu fechamento a ave da escuridão penetrou e fez ninho e morada em seu coração.
Naquela noite, no horário do jantar, toda a família real estava reunida, bem como inúmeros nobres convidados; a mesa era enorme, músicos tocavam alegremente, e bem na ponta desta o grande rei.
Todos comiam, bebiam e conversavam alegremente, então, em determinado momento o monarca levantou a mão e todos silenciaram, pois sabiam que o rei iria falar.
O monarca deu uma passada geral com seus olhos reais pela mesa...
- Príncipe Zinho, de pé, - falou o rei.
O menino na grande mesa levantou-se. - Pois não Vossa Majestade...
- Príncipe, leia para mim o que está escrito naquela grande parede à sua esquerda, bem lá em cima, no topo.
O rei naquele momento fazia alusão à parede do palácio onde todos os éditos ficavam gravados em alto relevo.
E então o príncipe em voz alta leu para todos ouvirem:
- Édito do Sal: Para cada cinco arrobas de grão, uma arroba de sal.
- Professor Coruja! - falou novamente o rei.
- Sim Vossa Majestade, - respondeu o real professor levantando-se.
- O Príncipe sabe ler muito bem, porém, ainda não compreende o sentido do que está escrito. Na noite passada ele retirou quatro sacas de sal do armazém geral, descumprindo a letra da lei. Quero que, a partir de amanhã, por oito horas por dia, você ensine a ele o fundamento do édito do sal, durante um mês. Alguma dúvida?
- Não Vossa Majestade.
- Príncipe Zinho, - falou ainda o Rei Zão, - Neste período de aprendizado com o Professor Coruja você não saia das dependências do palácio. Que isto lhe sirva de lição.
O Príncipe desejava muito que uma enorme cratera pudesse ser aberta no chão, a fim de que ele pudesse cair dentro dela e sumir para sempre, mas sob todos os olhares da corte, a cratera simplesmente não se abriu.
- Músicos... - falou o rei, - voltem a tocar!
A música voltou, todos voltaram ao real jantar e às reais conversas, porém, realmente, o pássaro da alegria já havia voado para longe, muito longe.
Os dias que se seguiram foram tristes para o Príncipe Zinho, que passava todo o tempo lendo, escrevendo e dissertando sobre o édito do sal com o professor Coruja, hora após hora, exaustivamente. No final de cada dia, o menino ainda precisa escrever trezentas vezes na lousa:
Para cada cinco arrobas de grão, uma arroba de sal.
Para cada cinco arrobas de grão, uma arroba de sal....
Depois das aulas com o bondoso professor Coruja, o menino ficava triste pelos cantos do palácio, sem poder sair e entrar em contato com a natureza, e a vida exterior, algo que ele tanto amava fazer.
No último dia das lições, um mês depois, o menino sabia tudo sobre aquele édito, tudo sobre sal, sobre arroba, sobre todos os grãos do reino, sobre todas as carroças, sobre todas as aldeias; sabia somar, subtrair, multiplicar, dividir, sabia sobre todas as unidades de medidas, sabia de tudo, sabia tanto, tanto...
O professor Coruja estava satisfeito com o aprendizado do Príncipe - será um grande rei um dia, pensava ele -, certamente o monarca ficaria também muito contente com o resultado daquelas aulas.
Dirigindo-se em direção à porta da sala, Príncipe Zinho olhou para a lousa com aquelas trezentas linhas escritas por sua própria mão, e então com orgulho e desembaraço leu em voz alta...
Para cada cinco arrobas de grão, uma arroba de sal.
Antes de sair da sala, Príncipe Zinho viu grandes carroças aproximarem-se do armazém geral, e lá ficarem estacionadas.
- Professor coruja, que carroças são aquelas?
- São as carroças da aldeia do sul, grande produtora de grãos de girassol.
- Sim professor... e segundo os nossos estudos, e minha própria experiência, este ano ocorreu lá uma grande seca, e a produção de grãos foi baixa, muito baixa.
- Absolutamente correto Príncipe Zinho...
- Mas então professor, por que tantas carroças, se não existem tantos grãos?
- Não sei te responder Príncipe Zinho, não sei... - falou o professor Coruja de forma sincera.
Príncipe Zinho andava agora pelos corredores do palácio leve como um passarinho, a última aula havia chegado ao fim, e no dia seguinte ele estaria finalmente livre. Uma sensação de alívio tomou conta do menino, ele havia aprendido muito, e sabia agora a importância da leia e sobretudo do espírito da lei. Foi então procurar pelo pai...
Naquele momento o Rei Zão estava na real sala dos conselheiros, e o Príncipe dirigiu-se para lá; aproximando-se ouviu risos e conversas. Na grande sala estavam o grande rei e alguns de seus nobres, antigos e grandes amigos de juventude e caçadas: Barão do Girassol, Conde do Girassol Miúdo, Duque do Girassol Graúdo e o Visconde do Girassol Amarelo, todos proprietários de grandes porções de terra na distante aldeia do sul, conversando sobre a grande queda na safra de girassol, um grande problema...
- Vossa Majestade... - falou o Barão do Girassol, - não conseguimos produzir quase nada, uma lástima. Tivemos seca, pragas e muito calor, este ano tivemos enormes baixas na produção dos grãos. Estamos muito endividados, e com quase nenhum sal para negociar.
- Ora Barão Girassol, estas coisas acontecem... Somos amigos de longa data, eu compreendo tudo isto, não conseguimos ainda controlar as condições do clima. Amigos: Não se preocupem com isso, o sal é necessário para todos, e temos em abundância aqui nos armazéns. Este ano vocês levam todo o sal necessário, e para o próximo, dependendo das condições da colheita, vocês fazem o acerto.
Naquele instante, a alegria reinou naquela real sala, e os homens ali reunidos, juntamente com o grande Rei Zão, a fim de selarem aquele nobre desfecho, beberam com contentamento grandes taças de um excelente, nobre e real vinho.
Príncipe Zinho, próximo à sala, e sem ser notado, ouviu tudo aquilo e ficou meio tonto e sem chão, como se tivesse levado uma pancada na cabeça; lentamente voltou para a sala de suas lições e parou diante da porta. A poucos metros a lousa ainda estava com aquelas centenas de linhas escritas por ele. O menino tentou ler e não conseguia, seus olhos estavam turvos.
Permaneceu ali estático por muito tempo, até a partida da última carroça abarrotada de sal, e no seu íntimo, ele sentia naquele momento a mais absoluta certeza, que não tinha mesmo a menor possibilidade de entender a lei e o espirito da lei, apesar de todo o seu sincero esforço, e de toda a dedicação do professor Coruja.
Daquele fatídico instante em diante, e por muitos anos, Príncipe Zinho começou mesmo a achar que, apesar da abundância de sal nos armazéns reais, a vida poderia ser mesmo muito, muito insossa.
Já era alta madrugada, e brevemente a luz solar surgiria no leste, então, aos poucos a escrita na lousa foi, como o novo dia que principiava, raiando aos seus olhos, e ele, mesmo sem o brilho no próprio olhar, finalmente conseguiu ler o que estava escrito da mesma forma em trezentas linhas:
"Serei sempre pequeno e nunca crescerei, a fim de jamais ser o grande rei."
Comentários
Postar um comentário