O Menino das Pernas Tortas

O menino nasceu com as pernas tortas, tal como Garrincha, o maior ponta da história, porém, ao longo de sua  vida, apesar de ter desejado muito, nunca teve vocação para jogador de futebol, no seu bairro de periferia pobre, no campinho de terra batida, sob a sombra de centenárias mangueiras amigas,  era seguramente considerado o pior entre os piores,  e com as pernas já alinhadas, nunca conseguiu muito sucesso dentro das quatro linhas, provavelmente, após a correção o mundo tenha perdido um grande jogador, em contrapartida, talvez, quem sabe, por algum efeito colateral, ganhou um homem simples, eterno amante das árvores, que cuida delas em suas horas vagas. E a deformidade era tanta, que quando o garoto andava, tocava um joelho no outro, de forma que era preciso corrigir o problema, e a solução na época era a utilização de botas com um fundo metálico, botas que pesavam uma tonelada ou mais, e o menino usou por um bom tempo. E ele andava arrastando aquelas pesadas botas, a fim de corrigir o andar, dezesseis horas por dia,  e lá ia ele para a escola com o andar tão pesado, e os colegas zombavam dele, e ele quieto calçado em suas botinas metálicas, ia no andar corrigindo as suas pernas, e quem sabe a alma também, no fundo, o que mais doía não era o uso dos pesados calçados, ou a brincadeira dos colegas, mas o fato de ele não poder tocar no chão com os próprios pés, o menino amava pisar na terra, gostava muito de sentir o  pó do chão,  no seu íntimo, ele já sentia em si a alma inequívoca de agricultor. Ele morava no interior, e aqueles calçados especiais somente eram fabricadas na capital, e lá ia ele com a mãe, a inesquecível costureira,  uma vez por ano, a fim de obter as botas, fazer os exames e  ir aos poucos corrigindo as pernas tortas. Deste período de sua vida ele tem vagas lembranças, consegue ainda se lembrar que a cidade onde eram fabricadas as botinas,  Rio de Janeiro, era um local com muitos fios elétricos e postes, lembra também que o sapateiro ficava em uma ladeira, mas ele não se lembra mais do nome do sapateiro e tão pouco  da ladeira, ou mesmo o nome do  bairro, tudo tragado pela marcha do tempo, consegue no entanto se lembrar, que na cidade grande, ele dormia na casa de seus tios, lá no bairro de Olaria, o tio era um mecânico sorridente, gentil e bom de conversa,  era o irmão de sua mãe, e irmão do Mosquito, o outro mecânico da família, era um homem apaixonado por automóveis, e seu amor pelos veículos ao longo da vida foi tão grande e contagiante, que um de seus filhos, seguindo a vocação do pai e a lei natural do progresso, graduou-se com louvor em engenharia mecânica.  A lembrança de  sua tia Zilda é a de uma mulher muito bela, de uma elegância sem fim, parecia mesmo uma daquelas atrizes bonitas americanas que ele via no cinema lá no interior. Contudo, deste tempo que passou, e o tempo sempre passa, a lembrança mais marcante foi o dia em que ele, dentro do ônibus, chegando na capital , em determinado momento olhou algo que o  surpreendeu para sempre, ele avistou pela primeira vez o mar, e o mar era tão grande e tão bonito e tão azul, com o horizonte a perder de vista, e então ele percebeu que o infinito do mar ia muito além da finitude do seu olhar.

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