O Jovem que Rasgava os Textos

Ipê Roxo
Por muitos anos o jovem escrevia os seus textos; invariavelmente começava assim: "Hoje é dia 23 de março de 1995, lá fora os pássaros cantam, sinto dentro de mim uma angústia...", e ele ia escrevendo, escrevendo, as palavras, frases e sentenças iam aos poucos brotando de dentro dele, de forma natural, e ao final, lia tudo o que havia escrito, e aí, algo curioso acontecia, com medo de que alguém pudesse vir a ler o que ele havia colocado no papel, ele simplesmente rasgava o texto em muitos pedacinhos e o jogava fora. 

Este processo repetiu-se por muito tempo, muitos textos foram perdidos, o jovem não desejava mostrar para ninguém o que sentia dentro de si mesmo, é como se ele fosse uma ilha e não desejasse de forma alguma ligar-se ao continente. "Hoje é dia 18 de março de 1979, estou indo embora da casa do meus pais, vou estudar fora, tenho tanto medo de fracassar, tudo é tão assustador....". Mais um texto perdido e jogado ao vento. 

"Hoje é dia 15 de abril de 1980, todos os dias pego o mesmo ônibus, no mesmo horário, simplesmente para ver aquela moça tão bonita, acho que estou...". O que estaria o jovem sentindo pela moça? Talvez amor, paixão, atração da juventude.. seja lá o que for, o texto não existe, seu registro foi lido por ele, despedaçado e jogado fora, jogado ao vento, e o vento levou. 

Assim ele agiu durante muito tempo, até que, cansado de rasgar o que escrevia, ou mesmo, com medo de revelar o seu mundo interior, ele simplesmente parou de escrever, e daquele momento em diante não havia mais nada para rasgar, seu mundo interior estava seguro, lacrado, seus pensamentos, sentimentos e emoções, pensava ele, iriam acompanhá-lo até o dia final, até a sepultura. 

O tempo foi passando, o jovem foi amadurecendo, foi aos poucos conhecendo seus próprios sentimentos, percebeu em si um sem número de emoções como medo, rancor, ressentimento, mágoa, inveja, indiferença, ingratidão, solidão e outras como amizade, alegria, gratidão, saudade, ternura, lealdade, respeito, ternura... E quanto mais o jovem conhecia o seu mundo íntimo, viajando constantemente para dentro de si mesmo, mais ele se entusiasmava, a viagem interior foi trazendo para ele um mundo maravilhoso de descobertas, ele foi aos poucos percebendo, que não precisava esconder nada de ninguém, foi descobrindo sua própria condição humana, suas grandezas e fraquezas, e foi percebendo que habitava dentro dele um mundo de trevas e luz. 

O jovem reconheceu no fundo que luz e escuridão faziam parte de sua natureza, isto era um fato e não havia como fugir disto, e sobretudo ele percebeu que não estava só, ele sentiu em si que fazia parte de algo muito maior; dentro dele o jovem descobriu que era apenas um minúsculo fio de um tecido muito grande chamado humanidade, e dentro de si ele viu e sentiu o seu pai, sua mãe, seus irmãos, seus avós que já haviam partido, inúmeros amigos, pessoas conhecidas e desconhecidas, tudo dentro dele, e então, finalmente ele deixou de ser uma ilha, ligando-se ao continente onde habitam todos os outros humanos e bichos, e plantas, e céu, e inferno, e dia, e noite, e coisas, e tudo... 

A partir destas descobertas o jovem, agora um pouco mais amadurecido, não mais sentiu solidão, e aí, como a água que brota da fonte, as palavras foram pouco a pouco brotando de seu coração, e ele voltou a escrever, e seus textos não foram mais destruídos. 

"Hoje é dia 19 de outubro de 2015, lá fora uma brisa suave, a noite está chegando, já se vão trinta e sete anos desde que sai da casa de meus pais, e recebi da vida muito mais do que pedi. Aquela jovem do ônibus perdeu-se na noite dos tempos, sofri muito, era pura carência, porém, o Senhor da Vida jamais me abandonou, e anos depois encontrei alguém com lindos olhos verdes que até hoje olha para mim com amor cristalino, e isto é tão bom; é bom ser amado, e é maravilhoso gostar dos outros também. De vez em quando a angústia me visita, recebo-a bem, converso com ela, que tem sido para mim uma mestra a ensinar-me o caminho do amor por tudo o que existe. Ontem semeei um sem número de ipês, como são belos os ipês..."

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