Isaac e Sebastião

Sebastião, o amigo de Isaac
Muitos anos já se passaram, mas a figura do Sr. Isaac Spritzer nunca deixou de povoar as terras de minhas emoções.  Lembro-me bem de sua aparência, olhos fundos e profundos, alguma coisa em sua figura sempre me inspirou algo, talvez admiração, ou respeito, não sei ainda hoje definir o que é. Isaac nasceu na Polônia, viu seu país ser invadido na segunda guerra mundial, foi preso, viveu em campo de concentração, lembro-me bem de observar que no braço dele havia um número gravado, deveria ser o seu código de inscrição no campo, porém, não sei como, ele conseguiu fugir, e veio parar nas terras do Brasil, chegou ao Rio de Janeiro, e mais tarde foi se estabelecer  na minha cidade Natal, Barra Mansa região Sul do Estado do Rio de Janeiro.  Ele não veio só, sua amada também o acompanhou, mulher forte, bondosa e simples como o próprio nome, Maria. Na mesma guerra, esta estupidez humana, lutou o meu pai, como expedicionário, tendo ficado na Itália por três anos, retornando de lá no fim do conflito, no ano de Mil Novecentos e Quarenta e Cinco. Depois da guerra meu pai trabalhou algum tempo como motorista de ônibus na cidade do Rio de Janeiro, orgulho-me ainda hoje em saber que ele foi motorista de uma linha que ainda existe, a que faz a ligação entre a Praça XV e o Bairro de Madureira, região suburbana carioca. Lá pelos anos cinquenta, meu pai saiu do Rio de Janeiro, casou-se e também foi morar na cidade de Barra Mansa. E então, em algum momento no tempo, meu pai, motorista, descendente de alguma tribo africana encontrou-se com Isaac, dono de uma empresa de caminhões, descendente da tribo dos hebreus, um mulato e católico, o outro branco e judeu, e então estes dois homens tão contrastantes e tão fortes trabalharam juntos por muitos e muitos anos. Desde então, e por muitos anos, meu pai passou a dirigir as carretas de Isaac, eram caminhões grandes, vermelhos, fortes e bonitos, e meu pai cuidava de cada um deles com extremo carinho, era como se o veículo fosse uma extensão de sua própria família, era como se fosse um filho, ou o seu pai, ou ainda um amigo, difícil imaginar como alguém pudesse ter tanto cuidado, tanto zelo pela ferramenta de trabalho. Antes das viagens, checava o óleo, o nível dos pneus, a temperatura do motor, olhava tudo, com muito, muito zelo. Na empresa de Isaac os caminhões que passavam pelas suas mãos sempre tinham vida longa e baixa manutenção, devido aos seus cuidados. A vida naquela época não era fácil, meu pai muitas vezes fazia viagens muito longas, muitas estradas não eram asfaltadas, e às vezes ele demorava muito para voltar, e então a situação financeira na minha casa muitas vezes ficava apertada, os custos com material de construção eram altos, e lembro-me muitas vezes de minha mãe, já aflita, pedir a meu irmão para ir à empresa de Isaac pedir um vale para cobrir as despesas, até a volta do caminhoneiro. Ainda hoje me recordo do meu pai vindo de viagens longas trazendo no caminhão de Isaac, muitas vezes, enormes pedras para a fundação da futura casa. Soube posteriormente,  através de minha mãe, que os vales jamais foram descontados, soube também que meu pai havia comprado para a construção da casa um lote, o da frente, mas ele tinha o sonho de mais tarde, comprar também o lote dos fundos, para uma área verde, e mais uma vez minha mãe me confidenciou que o lote dos fundos foi presenteado a ele por Isaac, e também vim a descobrir que Isaac não só ajudou a meu pai, mas também muitos outros empregados que trabalharam para ele. Minha mãe me contava estas histórias com tanta emoção, e na sua fala eu percebia o quanto ela estimava Isaac, acredito piamente que os rabis se reconhecem. Anos depois, meu pai deixou de ser motorista, e passou a ser o encarregado geral da empresa, algo como um gerente, um homem de confiança de Isaac, e durante este período, ele transformou um pátio árido que era o estacionamento das carretas em um imenso jardim, plantou muitas árvores e flores ao longo dos muros, e era mesmo comum ele despachar com os fornecedores enquanto regava as plantas.  Um dia, estando eu na transportadora, presenciei uma discussão entre os dois, relativa à compra de pneus, Isaac tinha uma opinião, e Sebastião tinha outra, mas a frase que ficou gravada em minha mente foi: "Seu Isaac, na sua empresa quem compra os pneus sou eu!". Creio que havia muito respeito mútuo e admiração entre eles, meu pai trabalhou lá até a aposentadoria, e chegado este dia, Isaac cumpriu uma antiga promessa, e pediu a ele para ir a uma agência de automóveis, e lá escolher, como presente o melhor carro, qualquer um, sem se importar com o preço. E Sebastião foi à agência e lá viu muitos carros, e dentre todos eles, ficou com o mais simples, optou por um fusca branco. O que teria pensado Isaac neste dia, talvez tenha passado pela sua mente que ele realmente estava diante de um motorista extraordinário, um gerente exemplar, não um empregado, mais sobretudo um homem incomum, indivíduo pelo qual ele possuía uma verdadeira amizade. Meu pai sempre foi um homem de poucas palavras, mas depois de aposentado, ouvi dele muitas vezes histórias do Isaac, ele falava daquele homem não como o ex patrão, falava dele como se falasse de um irmão muito querido, hoje sei que sebastião amava Isaac. Lembrando de todas estas histórias sei que Isaac é um Herói para os filhos de Sebastião, bem como, acho que Sebastião também deve ser um herói  para os filhos de Isaac. Um dia Isaac partiu, viajou para longe, para muito longe, para terras distantes, muito além de sua terra natal, muito acima das nascentes do rio Jordão, cumpriu por aqui o seu papel com profunda dignidade, fico ainda a imaginar como um homem que sofreu tanto, que perdeu tudo, e recomeçou do nada em um país quente e tropical, com uma cultura tão diversa, possuía ainda em si o dom extraordinário de amar as pessoas. Sebastião ainda está por aqui, com noventa e três anos, olhos longe, perdidos, talvez, quem sabe, sentido a falta do amigo que viajou muito antes dele. Agora, olhando o passado, acho que o que estes dois homens tinham em comum, e o que os unia tanto eram sentimentos muito nobres como dignidade, honestidade, força, disciplina, caráter, fé, esperança, coragem, amor... Possivelmente cada um via isto no outro, e isto os aproximava como irmãos. Saiba Isaac, se um dia eu partir, e se além houver um céu para os eleitos, e se eu, pela minha pequenez não puder entrar, e se ainda eu souber que neste céu tu estás Isaac, junto com tua bela e amada Maria, não tenhas dúvida, recorrerei, se necessário, aos Patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, suplicarei a todos os profetas do velho testamento, rogarei à todos os reis hebreus de todos os tempos que permitam que eu entre, um minuto que seja, mesmo que eu tenha que atravessar todo o deserto do Sinai, como fez sua tribo no passado, somente para dar lhe um forte e eterno abraço de gratidão, um abraço profundo e amoroso do filho do caminhoneiro, ao saudoso hebreu,  homem tão simples e tão bom, eterno e saudoso herói do meu coração.










Comentários

  1. Belo texto. Parabéns. Espero q outros familiares apreciem.

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  2. A natureza tem seus mistérios e um deles é a lei do equilíbrio. Pais extraordinários, geralmente filhos medianos. Porém, para alegria geral da humanidade, o dna bom se perpetuou no gen do bem e no exato teste da gratidão ...
    As enormes virtudes dos antigos heróis e resilientes homens, sobreviveu a guerra, ao tempo, a mesmice!
    Encanté!

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