Os Heróis também choram

Cachorrinha da Serra de Paracambi, bem parecida com o Camborde
Meu herói era segundo minha visão infantil muito poderoso. Era forte, seguro, honesto, trabalhador, viajava muito, e quando voltava sempre trazia alguma coisa para a mulher e os filhos. Lembro-me bem de procurar pelos bolsos das calças que seriam lavadas, e encontrar lá muitas cédulas, que maravilha uma cédula para uma criança. Gostava de vê-lo sentado à cabeceira da mesa na hora do almoço, sua presença em casa inspirava autoridade e segurança para todos. Por muitos anos de sua vida, percebi que ele enfrentava situações bem adversas, sem perder o controle de sua emoção, os heróis devem ser mesmo assim. Lembro-me bem do dia da morte de meu avô, eu era pequeno, tinha, quem sabe uns oito anos de idade, meu velho, meu herói, segurou firme a onda, deu orientações, tomou providências, acompanhou o sepultamento do seu pai, e no final do dia, estava em casa, triste, porém sereno, a vida deveria continuaria, dizia ele, quando alguém parte, fica um buraco em quem fica, e isto é natural, é humano, assim ele me dizia. E foi assim quando partiu minha avó, tios, primos, vizinhos, parentes próximos ou distantes, meu herói estava sempre lá firme e sereno. Poderia ser esta a visão eterna do meu pai, mas a vida sempre nos reserva algumas surpresas. Havia na minha casa um cachorro vira lata de nome Camborde, que veio da Cidade de Governador Valadares, na boléia do caminhão do meu herói, um cachorrinho meio preto, meio pardo. O nome do cachorrinho era bem curioso, e segundo o meu herói, estava havendo uma grande guerra lá no estrangeiro, em um lugar chamado Camborde, ele havia ouvido no rádio, daí, resolveu batizar o cachorro com o nome do País em litígio. Anos mais tarde descobri que o lugar ficava no Sudeste Asiático, e o nome correto era Camboja, porém o bicho já estava mesmo batizado e juramentado. E o cachorro viveu muitos anos na minha casa, ficava sempre preso, porém nos sábados ganhava uma noite de liberdade, ficava solto, e passava a noite toda na rua, chegando sempre pela manhã, exausto, porém muito feliz. Era um animal muito querido por todos, eu cuidava sempre dele, e não nego que muitas vezes entrei na sua casinha para trocar algumas palavrinhas, não sei se ele me entendia, mas confesso que prestava sempre muita atenção. E num domingo matinal o camborde apareceu da rua, porém muito abatido, o animal não estava bem, chegou e foi para sua casa dormir. Ficamos todos preocupados com o estado dele, porém, ele não melhorou e morreu, trazendo muita tristeza para todos na casa. Lembro-me muito bem, como se fosse hoje, de ver o meu pai, meu herói enterrando aquele vira lata nosso amigo, nos fundos do quintal, atrás de umas bananeiras, e neste dia, pela primeira vez em minha vida até então, vi meu pai derramar grossas lágrimas, lágrimas de dor e gratidão pelo bicho que estava partindo. Os heróis também choram.

Comentários

  1. Um agricultor que planta palavras vindas da alma certamente terá uma colheita promissora.

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    1. Sinto que é na alma que reside a alegria por que tanto anseio...

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