Acorde Menino! Eu Sou a Realidade
Ela chegou como chegava o meu pai; olhar firme, presença absoluta, força, doçura, disciplina... não havia como evitar a sua presença ali naquele momento. Não falou absolutamente nada comigo — era, como papai, de poucas palavras —, caminhou lentamente, deu uma olhada em torno, olhou profundamente para mim que estava despertando e disse-me:
— Vamos lá fora!
Sai juntamente com minha visitante para o ambiente exterior, o dia estava amanhecendo, mas o sol ainda demoraria um pouco para dar o ar de sua divina graça; não fazia frio, creio que era março. Andamos um pouco e então ouvi novamente aquela voz tão presente:
— Pare agora e olhe para trás! O que você está vendo?
— Vejo meu belo castelo de contos de fadas e a ponte levadiça; vejo as galinhas no quintal, os sapos nos brejos e as mangueiras floridas; vejo as fadas, as princesas e os príncipes; vejo mamãe deixando o almoço prontinho as doze horas em ponto; vejo os pratos emborcados sobre a mesa com toalha azul e branca; vejo roupas no varal; vejo vovó no fogão de lenha e vovô serrando madeira; vejo o campinho de futebol; vejo pião e bolinhas de gude; vejo soldadinhos e jogos de botões; vejo papai chegando no caminhão vermelho; vejo vira latas e passarinhos ....
— Neste contexto todo, quem é você?
— Sou o proprietário de todo este universo, e nele viverei feliz para sempre, pois isto jamais passará.
— Qual a sua idade agora?
— Tenho dezoito anos, quase dezenove.
Minha visitante ali do meu lado olhou para mim de uma forma tão intensa e penetrante — até parecia o olhar de papai —, que não consegui sustentar o olhar. Foi direta, e sem meias palavras falou:
— Tudo isto vai acabar agora!
Instantes depois vi todo o meu castelo de contos de fadas em chamas, tudo ardia intensamente, e as labaredas, de tão altas, quase alcançavam o céu. Que coisa absurda, o que era aquilo, o que estava acontecendo? Meu Deus, meu Deus...
Grossas e abundantes lágrimas desciam de meus olhos — como uma grande catarata —, aquilo tudo era uma loucura total, aquilo era um pesadelo. Naquele momento senti vazio, senti medo, senti solidão e abandono; naquele momento fiquei revoltado e desamparado, não tinha como voltar para o castelo — estava em chamas —, e eu não tinha para onde ir, estava perdido, perdido... Ah meu Deus que dor, que dor.
Não sei onde arrumei forças naquele instante, tal era a minha dor, a minha revolta e o meu profundo desconsolo, mas eu precisava saber, eu precisava saber... Com todos os meus sonhos destruídos em poucos segundos, e eu ali no meio do nada perdido, sofrido, com fome e vazio, virei então para o lado e perguntei:
— Quem é você que destruiu todo o meu mundo, quem é você?
— Acorde menino! Eu sou a Realidade.
Ouvindo aquela voz tão imperiosa acordei; estava dentro de um cubículo no Centro de Niterói dividindo o espaço com mais cinco pessoas que eu não conhecia muito bem. Eram sete horas da manhã, o pão que eu comeria era dormido e sem manteiga, não havia nenhuma fruta, não havia pai e mãe, não havia quintal; olhando para a janela do cubículo, avistei a imensa parede de um prédio com pintura desbotada — um descomunal muro vertical —, não havia horizonte.
Levantei-me e fui ao minúsculo banheiro — cabia apenas um —, e lá sozinho e sofrido chorei. Queria tanto voltar para os meus castelos e os meus soldadinhos de plástico, queria tanto o quintal e os passarinhos, tanto, tanto...
Instantes depois tive que parar com o choro, alguém chegava e batia na porta — que inferno, nem chorar em paz eu podia. Depois de comer o meu pão, passei aquela manhã estudando um pouco de álgebra linear, e lá por volta do meio dia sai para almoçar e posteriormente ir para a faculdade.
O prédio dos cubículos era um horror — quase quinze mil portas em um corredor infinito com um cheiro constante de repolho azedo —, meus vizinhos — creio que existiam mais de mil — brigavam e gritavam de forma muito constante — estaria eu no Oriente Médio? —, o elevador demorava setenta e três minutos para chegar no térreo — aquele lugar infernal rodeado de pessoas, muitas pessoas por todos os lados — era um prédio central na principal avenida da cidade.
Subi a avenida infestada de carros, prédios, gente, ruído e poluição, em direção ao refeitório do hospital universitário; estava com fome, muita fome, e com a codependente dor, muita dor — não sei o que sentia mais. O prato daquele dia era dobradinha — nunca suportei nem o cheiro —, fechei então os olhos, coloquei aquela goma na boca e engoli tudo o mais rapidamente que pude, a fim de não sentir o gosto e preencher o vazio do meu estômago, ou seria o de minha alma? Devorei o pão, bebi o copo de leite e — Ah... que maravilha —, degustei aquela laranja amarelinha — um verdadeiro colorido na dura realidade em preto e branco.
Algum tempo depois estava na faculdade; ao longe avistava a Baía de Guanabara e a Praia das Flechas — o cacique Araribóia e os seus já haviam partido a séculos. Interessante que as imagens que eu havia visto antes das provas do vestibular eram bem mais bonitas, haviam até coqueiros nas imagens — as imagens não exalam cheiros desagradáveis.
Lá pelas cinco horas da tarde, com fome e sem dinheiro para lanchar, subi até o quarto andar do instituto de matemática — raramente havia alguém por lá —, aquilo era quase que um ritual semanal: "Pare um pouquinho, fuja um pouquinho, chore um pouquinho". Então, debruçado na janela e olhando para o mar chorei copiosamente por alguns minutos — queria a minha mãe, dentre tantas outras coisas. Naqueles momentos ela novamente aparecia para mim naquele andar solitário, e eu, como um insano raiado de dor, querendo ouvir uma resposta diferente para a mesma pergunta, teimava em perguntar:
— Quem é você que destruiu todo o meu mundo, quem é você?
A resposta era sempre a mesma, sempre a mesma...
— Acorde menino! Eu sou a Realidade.
Agora eu percebo a negação, aquela armadura protetora que usei tanto tempo para tentar fugir de meus mais profundos pesares infantis;
finalmente começo a liberar a minha raiva congelada, que de tão putrefata, costuma exalar desagradáveis odores, tal como o gás metano nos fundos dos profundos vulcões;
principio a perceber meus padrões de negação com tudo e com todos — minha política pessoal —, a fim de tentar sobreviver e não cair nos abismos de dor e sofrimento interior — o equilibrista na corda bamba de suas emoções;
descubro não a América, como Colombo, mas a sombria ilha de isolamento total onde vivi décadas, meu próprio desterro pessoal, o avesso da vida, minha depressão — deprimidos não observam, não enxergam, não ouvem, não falam, não choram —, a mais pura manifestação da birra absoluta com a vida, do inconformismo total, da mágoa mais profunda por não conseguir impor o meu controle e a minha vontade sobre tudo e sobre todos, e tomando consciência de tudo isto vou, pouco a pouco, soltando-me — como é bom sentir no rosto o vento da liberdade;
e enfim, lá vem chegando a aceitação, aquele sentimento maravilhoso que permite-me olhar para as cicatrizes de minhas próprias feridas emocionais, sem mais sentir a dor de outrora — a tristeza da aceitação é como um fogo brando que transforma trevas em luz.
Pare um pouquinho, fuja um pouquinho, chore um pouquinho, estude um pouquinho... Gratidão Realidade pela dura lição e pelas amargas lágrimas de ontem e as doces lágrimas de agora; gratidão papai pela sua força e o seu olhar; gratidão mamãe pela toalha azul; gratidão vovó pelo fogão de lenha; gratidão vovô pela simplicidade e pelo serrote.
Gratidão Poder Superior por todas as galinhas de todos os quintais; gratidão por todos os passarinhos do céu e por todas as mangueiras floridas de minha infância; gratidão pelo meu pedregoso caminho interior, onde, caminhando com os pés cheios de dor de tanto sangrar e pisar, vim a descobrir um dia, nestas andanças, uma realidade maravilhosa, um régio presente jamais imaginado em meus mundos de fantasia, um presente de 12 Passos; gratidão pela sua infinita sabedoria e eterno amor...
finalmente começo a liberar a minha raiva congelada, que de tão putrefata, costuma exalar desagradáveis odores, tal como o gás metano nos fundos dos profundos vulcões;
principio a perceber meus padrões de negação com tudo e com todos — minha política pessoal —, a fim de tentar sobreviver e não cair nos abismos de dor e sofrimento interior — o equilibrista na corda bamba de suas emoções;
descubro não a América, como Colombo, mas a sombria ilha de isolamento total onde vivi décadas, meu próprio desterro pessoal, o avesso da vida, minha depressão — deprimidos não observam, não enxergam, não ouvem, não falam, não choram —, a mais pura manifestação da birra absoluta com a vida, do inconformismo total, da mágoa mais profunda por não conseguir impor o meu controle e a minha vontade sobre tudo e sobre todos, e tomando consciência de tudo isto vou, pouco a pouco, soltando-me — como é bom sentir no rosto o vento da liberdade;
e enfim, lá vem chegando a aceitação, aquele sentimento maravilhoso que permite-me olhar para as cicatrizes de minhas próprias feridas emocionais, sem mais sentir a dor de outrora — a tristeza da aceitação é como um fogo brando que transforma trevas em luz.
Pare um pouquinho, fuja um pouquinho, chore um pouquinho, estude um pouquinho... Gratidão Realidade pela dura lição e pelas amargas lágrimas de ontem e as doces lágrimas de agora; gratidão papai pela sua força e o seu olhar; gratidão mamãe pela toalha azul; gratidão vovó pelo fogão de lenha; gratidão vovô pela simplicidade e pelo serrote.
Gratidão Poder Superior por todas as galinhas de todos os quintais; gratidão por todos os passarinhos do céu e por todas as mangueiras floridas de minha infância; gratidão pelo meu pedregoso caminho interior, onde, caminhando com os pés cheios de dor de tanto sangrar e pisar, vim a descobrir um dia, nestas andanças, uma realidade maravilhosa, um régio presente jamais imaginado em meus mundos de fantasia, um presente de 12 Passos; gratidão pela sua infinita sabedoria e eterno amor...
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