A Voz Dos Meus Avós
Naquele sábado, lá estava o Agricultor Urbano, próximo a um grande cedro rosa, procurando pequeninas mudas deste, em algum local ao redor da frondosa árvore. Foi observando atentamente cada pedacinho do solo, cedo ou tarde, se ali houvessem mudas, ele as encontraria com o seu olhar observador.
Não demorou muito e ele viu o que buscava. O detalhe é que próximo ao grande cedro, havia também um frondoso flamboyant, e este, assim como aquele, também deixou algumas de suas crias pelo chão. Abaixou-se o Agricultor e começou a recolher as mudinhas, a fim de providenciar para cada uma delas um saquinho com terra.
Recolheu indiscriminadamente os cedros, bem como todos os pequeninos flamboyants que encontrou por ali. Neste exato momento, alguém estava por ali, alguém que conhecia profundamente das atividade do Agricultor Urbano e do seu amor pela mata atlântica. Quando viu as mudas da árvore exótica nas mãos dele, refletiu um pouco antes de falar. Pelas suas conversas com aquele homem, e pelas árvores que via espalhadas através de suas mãos, imaginou que estivesse ocorrendo algum engano por parte dele.
— Bom dia agricultor.
— Bom dia...
— Sou a Voz do lado direito de seu hemisfério cerebral, pode me chamar simplesmente de Direita Voz.
— Bom dia então Direita Voz.
— Sei que a imensa maioria das árvores que você planta são da mata atlântica.
— Sim — respondeu o Agricultor.
— Estou observando em suas mãos, que além dos cedros, que são árvores nobres, você também está levando flamboyans — tornou a falar a Direita Voz.
— Sim...
— Creio que estas árvores, além de exóticas, não são nobres...
— Correto Direita Voz, correto... São nativas da África, mais precisamente da ilha de Madagascar, situada ao largo da costa sudeste do continente africano.
— Você vai plantá-las com as nativas da mata atlântica Agricultor? — interrogou mais uma vez a Direita Voz.
— Sim, farei isto certamente.
— Mas Agricultor, se estas mudas são de uma árvore exótica, por que plantá-las então juntamente com as nativas?
— Simplesmente uma homenagem Direita Voz, uma homenagem e sobretudo uma profunda reverência.
— Reverência a quem Agricultor?
— Aos meus ancestrais africanos.
— Ancestrais africanos? Não entendi Agricultor.
— Sim Direita Voz... ancestrais africanos. Meus avós eram negros; então, positivamente, alguns deles conseguiram realizar a infame travessia do atlântico sul, naqueles fétidos porões dos navios negreiros, chegando até o Brasil com vida, apesar de tudo.
Olho para o flamboyant e minha imaginação viaja até as savanas africanas, continente onde meus ancestrais viveram com liberdade. Fico então, Direita Voz, a pensar no drama deles, retirados de sua pátria, e comercializados como gado humano, perdendo completamente sua dignidade pessoal, totalmente usurpados de toda e qualquer liberdade de expressão.
Não posso Direita Voz, de forma alguma mudar o que passou. Mas posso recolher cada uma destas africanas mudas e plantá-las com todo o amor do meu coração, juntamente com as demais, e enquanto vou plantando, vou lembrando-me dos antigos cativos, e vou dizendo a cada um deles em pensamento: Perdão pelos navios negreiros, perdão pelo exílio em terras distantes, perdão pelo cativeiro; perdão pela escuridão, não o da pele de sua gente, mas o da alma daqueles que os escravizaram, perdão, perdão...
Pois um homem verdadeiramente nobre Direita Voz, jamais escravizaria um de seus irmãos, jamais... Nobre não é o cedro, plebeu não é o flamboyant; a nobreza exterior, conquistada através de mundanas condecorações é vazia, mesquinha e orgulhosa; nobreza, Direita voz, é muito mais que um título, é mesmo um sentimento humilde e profundo que brota, como as árvores, do solo sagrado do coração do homens.
— De onde vem esta voz que fala assim com tanta convicção? - indagou ainda a Direita Voz.
— Esta é a voz do lado esquerdo do meu hemisfério cerebral, minha Esquerda Voz, Direita Voz... a voz do meu sentimento, a voz da minha emoção, a voz da minha alma, a voz dos meus avós.
Quando terminou de falar a Esquerda Voz, a voz do coração, calou-se enfim, a Direita Voz, a voz do intelecto.
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