A Vira Lata Dor


Era uma vez uma belíssima e bem cuidada granja, onde moravam dois vira latas: Medo e Raiva. A granja, de tempos em tempos era visitada por uma outra vira lata — ora muito agressiva, ora suportável — chamada Dor, um animal sem dono. Quando sua fome apertava, Dor começava a vagar por aquela região, entrando em quaisquer daquelas inúmeras propriedades existentes, mesmo sem ser convidada. 

De um modo geral, todos espantavam a pobre Dor, ninguém gostava de sua companhia; Dor não era má. A grande maioria das pessoas também possuíam um certo receio de Medo e Raiva, os cães da bela granja. 

O nome do granjeiro da bela granja era Equilibrado — isso mesmo, Equilibrado —, que no seu natural equilíbrio, gostava de todos aqueles cachorros, até mesmo da Dor, a quem sempre que podia, acolhia sem queixumes, doando mesmo a ela um pouco de sua atenção.

Quando ao anoitecer Dor se aproximava, Medo, através de seus latidos dava os primeiros sinais de alerta, ficando sempre atento, porém na retaguarda. Raiva, que era mais ousada, aproximava-se mais da Dor, e sem nenhum ato violento, mas com sua presença sempre firme, muitas vezes dava limites para ela.

Quando o granjeiro ouvia os latidos de Medo e Raiva, já sabia que Dor estava rondando a granja. Nestes momentos abandonava sua zona de conforto e ia então observar o que ela queria, jamais fugindo deste contato. Muitas vezes Dor fazia alguns estragos na granja — uma cerca quebrada, alguns ovos comidos, uma lixeira revirada... —, Equilibrado porém, assumia todos aqueles prejuízos, sem jamais julgar a Dor, aquela vira lata sem dono.

Um dia o granjeiro Equilibrado precisou fazer uma longa viagem; chamou então seu filho e pediu para que ele cuidasse da granja com muito carinho; o nome do filho do granjeiro era Desequilibrado.

— Meu filho — falou Equilibrado antes de partir —, além da granja, cuide também da Dor, aquela vira lata que passa por aqui quase todas as noites. Isto é muito importante menino, pois ela nos previne de um outro cão muito mais feroz, agressivo e perigoso.

Na ausência do Equilibrado, na primeira noite, quando Dor se aproximou para aprontar das suas, Medo e Raiva — como costumeiramente — latiram notificando a presença da intrusa. 

Desequilibrado estava em casa assistindo televisão; ao ouvir aqueles latidos agiu de forma totalmente passional, e ralhou severamente com aqueles cães.

— Cachorrada dos infernos, vão dormir... vão dormir suas pragas do Egito, estou assistindo futebol, parem com esses latidos do inferno, fora, fora... — foram estas as suas amáveis palavras para os queridos vira latas de seu pai.

Medo e Raiva, sem nada entenderem se entreolharam, e foram resignadamente dormir em algum canto, em seus velhos trapos de pano. Nesta noite Dor entrou na granja sem ser incomodada ou acolhida por ninguém.

Na segunda noite a história se repetiu... Novamente Dor se aproximou, e, como de costume, Medo e Raiva começaram a latir dando os sinais de alerta para o granjeiro de plantão. 

O granjeiro de plantão, o Desequilibrado, estava comendo pipoca e assistindo a uma de suas séries favoritas na televisão, e mais uma vez censurou os bichos de seu pai.

— Onde já se viu isso... Que coisa mais feia Medo, ficar aí latindo; desagradável a sua conduta sua Raiva estúpida e idiota, desagradável... vão dormir seus vira latas pulguentos, inconvenientes, estúpidos e insuportáveis, vão já dormir! Não quero ouvir nem mais um único latido, nem um pio, vão dormir! 

Naquela noite, como na anterior, Dor circulou mais uma vez sem ser admoestada, sem a atenção de ninguém, completamente incógnita, deixando um rastro de destruição atrás de suas pegadas.

Quanto mais o granjeiro Desequilibrado reprimia Medo e Raiva, mais a Dor se aproximava, e mais começava o granjeiro interino a sentir um tremendo mal estar; os negócios da granja não estavam indo muito bem.

A história foi se repetindo, de forma que, algum tempo depois, Medo e Raiva já não latiam mais, estavam exaustos de tanta recriminação e sermão do Desequilibrado. A esta altura, sem a consciência de sua presença pelo granjeiro, Dor já andava leve, livre e solta pela granja, aumentando a cada noite seu rastro de destruição e abandono por onde passava. 

Os negócios da granja estavam indo de mal a pior. Desequilibrado, depois de algum tempo começou a achar que Raiva e Medo eram agora inúteis, e percebia que de alguma forma Dor — aquela vira lata noturna que ele não suportava — estava trazendo grandes prejuízos à granja e ao seu bem estar pessoal — imprestáveis estes vira latas, pensava ele.

Desequilibrado gostaria mesmo de dar um sumiço naqueles cães, mas eles eram de seu pai, que brevemente retornaria. Resolveu então deixá-los de lado — amarrou os pobres bichos em correntes —, e conseguiu com um vizinho um outro vira lata, muito bonito por sinal, que praticamente não latia, e deu a ele o nome de Culpa. Com este novo cachorro, Desequilibrado achou que resolveria o problema com a Dor, aquela vira lata ordinária e problemática. 

Desequilibrado passou a amar a Culpa. Quando Dor se aproximava, Culpa não latia, Culpa não se manifestava, Culpa não fazia absolutamente nada — omisso cão —, e ainda mais, na maior "cara de pau", sem nenhum constrangimento, invariavelmente ia para a sala dormir ao lado de seu dono — omisso dono —, que passava longas horas de suas noites na frente da televisão. Noite após noite a Dor avançava.

Sem Medo e Raiva acorrentados, Dor foi aos poucos tomando conta de toda a granja, destruindo aos poucos tudo o que havia sido construindo pelo ausente dono, o Equilibrado; os prejuízos foram se avolumando, e a cada dia enchendo de preocupações o Desequilibrado granjeiro, agora constantemente envolvido com a Culpa.

Sem poder agora contar com Medo e Raiva — reprimidos e acorrentados —, e com Culpa sempre dormindo pelos cantos da Granja, Desequilibrado adquiriu um outro cão — que diziam infalível —, para ajudar no controle da Dor, aquela praga noturna de quatro patas. 

Conseguiu com um grande amigo de infância um outro cachorrinho muito fofinho, com um semblante sempre triste e fechado, com um olhar de um eterno coitadinho, de pelo bem branquinho; deu a ele o nome de Remorso. Desequilibrado amou Remorso à primeira vista — um gambá cheira o outro, diz o adágio popular.

"Bem...", pensou Desequilibrado, agora com Remorso e Culpa creio que conseguirei definitivamente afastar a Dor daqui, trazendo novamente a tranquilidade e a paz para a granja. Não tarda muito para que papai retorne.

Mas Remorso, tal como a Culpa, era também omisso e passivo, de maneira que, com o tempo, Dor, sem conhecer limites, sem atenção, completamente ignorada, foi revoltando-se cada vez mais, trazendo prejuízos irreparáveis para toda a granja. Enquanto isso, Desequilibrado, Culpa e Remorso passavam as noites na frente da televisão, e os dias cochilando pelos cantos.

Desequilibrado sabia que seu pai brevemente retornaria — como seria difícil para ele encarar aquele homem. Sentia Culpa e Remorso, sentia mesmo Raiva de si mesmo, e um grande Medo de enfrentar aquela situação. Estava, naquela altura mergulhado, tal como a granja, nas garras da Dor. 

Como assumir aquelas responsabilidades diante de seu pai, como? Naquele dia, tendo que ir à cidade para comprar algumas coisas, relatou para seu amigo, o dono de uma loja de produtos agropecuários, o seu drama.

— Rapaz... você chegou na hora certa — falou o dono da loja.

— Tenho aqui alguns cães de uma raça espanhola chamada "Negación", uma excelente raça! Solte um destes lá na granja e todos os seus problemas com Medo, Raiva, Remorso, Culpa, e Dor serão resolvidos. Se o cachorro não resolver o seu caso, devolvo o seu dinheiro.

Era tanta a aflição do Desequilibrado, e tão convincente foi o vendedor, que ele então comprou um daqueles cães, dando a ele o nome de Negação, e naquela mesma tarde o deixou solto pelos terreiros da granja; Negação rapidamente assumiu todo o controle. Desequilibrado ficou muito contente com aquele cachorro, finalmente um cão útil, e passou, mesmo com toda a derrocada da granja, a viver, como em uma bolha de ilusão e fantasia, de forma muito tranquila; toda aquela derrocada não era mais problema dele, ou melhor, muito melhor: A granja estava na mais perfeita ordem.

Numa certa tarde o telefone tocou, era o seu pai.

— Como você está, e como vai a granja meu filho?

— Papai, papai... que alegria em ouvir sua voz. Por aqui tudo em ordem papai, nossa granja vai de vento em popa, não se preocupe com nada, não se preocupe.

— Daqui a poucos meses estarei de volta meu filho; folgo em saber que está tudo bem. Como vão Medo e Raiva?

— Tudo sobre o mais absoluto controle papai.

]— E a vira lata Dor - falou ainda o pai.

— Ah papai... não a vejo a muito tempo, creio que partiu daqui para sempre.

— Eu te amo meu filho — falou ainda o pai. Desequilibrado porém não chegou a ouvir. Havia desligado o telefone naquele instante, pois Negação, Culpa e Remorso lambiam os seus pés.

Desequilibrado, com Medo e Raiva acorrentados, deixou também ao abandono Remorso e Culpa; agora somente a Negação, esta ilha imaginária de paz e tranquilidade no meio do grande mar da realidade. Nunca havia se sentido tão bem em toda a sua vida, nunca.

Um dia, quando Desequilibrado dormia, Negação saiu para dar umas voltas pela granja, e neste passeio encontrou-se com Dor. Sem muitos detalhes — coisas de alcova —, deste encontro nasceu posteriormente uma outra cadelinha muito peludinha, muito bonitinha, um encanto. Desequilibrado acolheu mais aquela vira lata — um verdadeiro presente dos céus —, e a batizou com um lindo nome. 

A granja estava finalmente arruinada, e Desequilibrado completamente anestesiado e entorpecido de encanto por aquela nova cadelinha, que o acompanhava constantemente, noite e dia, por todos os lugares onde pisassem os seus pés. Acorrentados estavam Medo e Raiva, e soltos pelo terreiro Culpa, Negação, Remorso, e até mesmo Dor, que passou a viver ali juntamente com os demais cães.

Finalmente, em uma sexta-feira à tarde, sem nenhum aviso prévio, Equilibrado retornou à sua amada granja. Ao chegar, cheio de saudades, chamou por Medo e Raiva que latiram de satisfação ao longe, ao ouvirem a voz de seu querido dono. Equilibrado foi até eles, e os acariciou; lágrimas desceram de seus sensíveis olhos ao observar seus amigos acorrentados; soltou-os imediatamente. 

Logo em seguida Equilibrado entrou em sua casa à procura de seu filho. Lá estava ele, sentado no sofá, com olhar ausente e distante, alheio à realidade, abraçadinho a um cão. No seu entorno, deitados pelos cantos, Remorso, Culpa e Negação.

Grande, muito grande foi o sofrimento do granjeiro, ao constatar que o filho havia desprezado a sábia vira lata Dor, que passava por ali todas as noites, ajudando na manutenção do equilíbrio da granja, e sobretudo, mantendo sempre afastada a perigosa e feroz fera, aquela, que naquele exato instante estava carinhosamente alojada no colo do filho, a Depressão.

Instantes depois, a própria vira lata Dor entrava na casa, em direção ao granjeiro Equilibrado. Este ao vê-la, abaixou-se e acariciou sua cabeça. 

— Seja bem-vinda minha grande Dor, seja bem-vinda. 

Naquele instante, com o coração em frangalhos, olhando para o amado filho naquele estado, ele resolveu definitivamente adotar aquela vira lata tão desprezada por todos, e daquele momento em diante ela passou a ser a sua própria Dor.

Comentários

  1. Estas novas fábulas, falam às crianças grandes, que depois de tanto tempo sem viver e ler boas histórias, precisam ler e reler, várias vezes para começar a entender. Retirando a depressão do colo, a negação, a culpa e o remorso do entorno ...

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