Tia Lucimar e as Crianças de Amanhã
Para a tia Lucimar, minha irmã, a vida nunca foi doce, lá pelos seus oito anos de idade foi diagnosticada a diabetes, e daí em diante ela não podia mais comer guloseimas, e democraticamente ninguém mais na casa, claro que nós sempre dávamos um jeitinho de contrabandear alguma coisa, e quando a minha tia avó Amélia aparecia por lá, dentro da bolsa sempre haviam muitas balas, que eu e meus irmãos comíamos rapidamente, escondidos pelos cantos da casa. Apesar de não consumir os doces, ela possuía em sim muita doçura, principalmente com as crianças. Verde pode passar, laranja, atenção reduza a velocidade, vermelho, pare. E os sobrinhos brincavam tão contentes com a tia, e alguns avançavam o sinal vermelho e gargalhavam, e a tia dizia que não podia fazer aquilo, que quando o sinal ficasse vermelho a regra deveria ser obedecida, e a regra era parar naquele semáforo que ela havia carinhosamente encomendado ao marceneiro, nosso vizinho, tendo este, a pedido dela, colocado as lâmpadas laranja, vermelha e verde, e assim, de forma alegre ela ensinava as crianças as leis do trânsito, enfim, ela possuía em si o dom de gostar da meninada, e interessante, as crianças também, de forma natural gostavam dela. Assim ela era, lembro-me agora com saudades de minhas idas à casa de meus pais, nos tempos de estudante, e quando minha mãe não estava presente, lá estava ela na cozinha preparando meu jantar com aquele sorriso cativante no rosto. Meus filhos e sobrinhos, todos eles receberam dela muita atenção e carinho e assim, pelo dom que possuía, ela acabou transformando-se em professora infantil. E ao longo de alguns anos ela foi ministrando suas aulas, educando a criançada e ao mesmo tempo lutando contra a doença crônica, que trazia para ela algumas restrições, agora, passado alguns anos, consigo me recordar, jamais a professora lamentou ou blasfemou, silenciosamente e com muita dignidade ela vivia a sua própria condição humana, sem queixas. E com o passar dos anos ela foi lutando, lutando, porém, pouco a pouco, a doença foi ganhando terreno, até que um dia... E então, pela segunda vez eu vi meu herói chorar, aquele que foi à segunda guerra mundial, e que chorou profundamente quando enterrou o seu querido cachorro vira lata, o Camborde, que ele trouxe na boléia do caminhão, lá de Governador Valadares, e depois novamente as lágrimas brotaram de seus vividos olhos quando ele teve que sepultar a filha tão amada, a professora Lucimar. O homem mais resistente do mundo, segundo a minha visão, naquele dia sofreu o mais duro golpe de sua vida, ele sempre dizia que pelas leis naturais, os filhos sempre deveriam enterrar os pais, isto era o certo, porém, a vida tem lá as suas maneiras, e a partir daquele dia o meu velho começou lentamente a desligar os laços com a realidade, provavelmente tentando encontrar dentro dele um local onde ele pudesse esquecer que a sua querida filha e professora, aquela menina frágil e doente que ele amou ao longo de sua vida com toda a intensidade de seu coração, a sua criança, que tanto amava as crianças, não estaria mais presente, havia partido, partido para sempre, deixando a sala da casa eternamente vazia, contudo, existem outras salas... Lá na escola pública na periferia da cidade, perto de um rio existe uma escola, e nesta crianças que andam, brincam, gritam, estudam e correm, e nesta escola existe uma sala com o nome da Professora Lucimar, provavelmente as crianças de hoje não saibam quem tenha sido aquela professora, talvez para elas seja apenas um nome gravado em uma placa, porém, se estas crianças, as crianças de hoje, perguntarem àquelas crianças que lá estudaram, as crianças de ontem, estas jamais se esquecerão da carinhosa professora Lucimar, a dedicada, que mesmo doente, não deixava de dar as suas aulas e transmitir conhecimento para todos os alunos, que ela educava com intenso carinho, e tratava tão bem como se fossem os seus sobrinhos, ou ainda com tanto amor como se fossem os filhos que a vida jamais lhe deu, e muito provavelmente as crianças de ontem diriam às crianças de hoje que a tia Lucimar tenha mesmo sido convidada a dar aulas em outras paragens, quem sabe, talvez existam mesmo escolas no céu, escolas cheias de crianças que não estejam ainda aqui, mas que mesmo lá, precisam de carinho, instrução, dedicação e amor, e provavelmente nesta hora mesmo estejam aprendendo a lição do semáforo com a tia Lucimar: Vermelho, pare, amarelo, atenção, atenção, reduza a velocidade, verde, siga, siga em frente, pode seguir, siga em frente tia Lucimar, professora querida, irmã saudosa, que passou pela vida, partindo tão cedo, doando sua própria doçura para as crianças, sem poder sequer comer um único doce, siga querida, de agora em diante todos os sinais estão verdes para você, continue ai a educar as crianças que virão, as crianças de amanhã.
Eterna única inesquecível tia ma que de ma nunca teve nada.
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