O Arigó Manoel em uma Volta Redonda

Lá no Fundo a Usina e o seu Forno
Acorda tio Manoel, já são vinte e duas e trinta e cinco, hora de ir para a usina, para o zero hora. Levanta tio Manoel, eu sei, eu sei que está frio lá fora, sei que você também está cansado, mas olhe bem tio, a usina não pode parar, o alto forno não pode apagar. Acorda tio Manoel, acorda tio, está na hora, quem mandou tio, o senhor sair lá da roça, onde dormia a noite toda, e acordava as quatro horas da manhã, para vir para a cidade, onde quase já não dorme, e passa a noite lá na usina, alimentando o forno, a vida é dura também aqui tio. Vamos agora para a  usina tio Manelão, a corrida contínua não pode parar, seu sono pode esperar, vamos tio, o tempo está passando. Eu sei do seu cansaço tio, mas olhe bem, você tem agora um monte de filhos para criar, levanta tio e vai trabalhar, a usina é logo ali, o alto forno não pode apagar, vá lá tio, senão amanhã, quem apaga é o seu fogão, que também precisa de fogo, que precisa de gás e  do seu esforço para ficar aceso. O dinheiro para a condução está curto titio, não tem importância, pegue a sua bicicleta e vá, não tem bicicleta tio, então vá mesmo a pé, vá logo tio, o forno da usina não pode parar, caso você se atrase, seu chefe vai se zangar, seu salário vai diminuir, corra tio, a hora está avançando.  Levanta tio Manoel, eu sei, eu sei, é véspera de natal, mas olha o zero hora tio, o forno da usina não pode esfriar, eu sei que é véspera de natal tio, mas, infelizmente, o papai noel está te aguardando lá na boca do alto forno, vá logo tio, e na hora da ceia, fique tranquilo, nem peru, nem nozes, nem castanhas e avelãs, coma mesmo o sonrisal, que a usina oferece tio, em noite de natal, ceia de arigó é mesmo o sonrisal, e como espumante beba um sal de frutas. Acorda tio Manoel, já são quase vinte e três horas, eu sei tio que é carnaval, hoje é dia de desfile das escolas, eu sei tio que o Senhor gosta de assistir, porém tio o forno te espera, vá desfilar lá na usina, quem sabe no bloco da madrugada, terás como porta bandeira o ferro gusa, e como mestre da bateria aquele zumbido constante da usina, e na comissão julgadora certamente estará o seu chefe, que belo carnaval tio Manoel, que belo carnaval. Ei tio Manoel, eu sei que você já sabe, olha a hora, são vinte e duas e quarenta e quatro, vamos lá titio, sim tio hoje é sexta feira santa, mas e daí tio, o alto forno não sabe nada destas coisas de feriado, de religião, de fé, de Deus, para ele, todo dia é dia de carvão, é dia de aço, para ele, todo dia é santo, desde que não falte o carvão, levanta tio e vai, amanhã, quem sabe, na volta, o senhor possa passar na igreja e fazer suas orações, rezar para os santos de sua devoção, rezar para Nossa Senhora, e pedir a Deus para dar-lhe forças para continuar alimentando aquele forno enorme da usina, sedento de calor, sedento de carvão, sedento do suor humano, forno insensível, que somente olha para o seu próprio umbigo, e que vai dia a dia gerando mais e mais aço, de uma forma frenética. Tio Manoel, por favor, desligue a sua vitrola, deixe ai os discos que o senhor gosta de ouvir titio, deixe o LP do Agnaldo Timóteo, do Roberto Carlos, do Nelson Gonçalves e os demais também titio, sua hora chegou, vá titio, vá para a usina, lá também toca uma música, aquele barulho constante e irritante, a música da usina, vá tio querido, está na hora de ouvir a sinfonia da siderúrgica e o lamento do forno, faminto por carvão. Vamos lá tio Manoel, você sabe, você sabe, está na hora, eu sei tio, que é a final do campeonato, eu sei tio, que você gostaria de ficar para assistir ao seu time jogar, mas infelizmente titio, só por hoje, quem vai jogar é o senhor, vai jogar lá no time da usina, vai jogar carvão no forno, bastante carvão.  Hoje tem filho doente em casa tio e o senhor gostaria de ficar, de cuidar da criança, de dar o seu calor humano, de ajudar a febre a baixar, é natural tio, e compreensível, porém tio, quem vai ficar doente é o forno, caso o senhor não apareça por lá, e se o forno adoecer titio, adoece a cidade toda, vai faltar pão, leite, açúcar, escolas, vai haver desempregos, vai faltar tudo, portanto titio, deixe o menino doente, entregue para a tia cuidar, entregue para Deus, e corra titio, vá, vá agora, vai cuidar do forno que precisa também do seu calor, e sobretudo dos seus braços para o carvão. Vamos arigó Manoel, mais um dia, vamos tio, vá para a usina, seus colegas já estão a caminho, olhe lá o arigó Eduardo, o arigó Antônio, seu cunhado,  o arigó Pedro, o arigó Paulo, o arigó Emídio, também seu cunhado, olhe lá tio, aquele arigó já idoso e cansado, ele é o arigó João Pereira, avô dos seus filhos, e observe agora tio, olhe lá adiante aquele arigó tão jovem que também já está a caminho, sim titio é ele mesmo, um de seus filhos, que também transformou-se em um arigó, veja tio, são tantos arigós a caminho, todos com simplicidade e dignidade indo para siderúrgica alimentar o forno, que tem uma infinita fome de calor e carvão. Agora descansa arigó Manoel, descansa arigó João, arigó Paulo, arigó Pedro, arigó Geraldo, descansem todos os arigós. Mais de trinta anos são passados, e vocês conseguiram manter o forno aceso, olhem lá, tantos anos depois,  acredite quem quiser, vocês são heróis anônimos, heróis de seus filhos, esposas, netos e amigos , vocês, com um tremendo esforço, por um longo tempo, durante muitas estações, sob diversas privações  construíram toda uma cidade. Descanse tio Manoel, mas antes de partir, suba juntamente com os seus amigos, os arigós, aquela colina  e veja, veja lá longe tio o rio , sim é ele, o Paraíba do Sul, veja no seu entorno como a cidade cresceu, tantas casas, lojas, prédios, pontes, viadutos, postos de saúde, escolas, creches, observe lá titio, tantos carros que passam, tanta gente que anda, são médicos, engenheiros, advogados, dentistas, profissionais liberais, são gente simples, são seus filhos, netos e bisnetos, que maravilha, tudo tio fruto do trabalho de inúmeros e anônimos arigós, que como o senhor construíram e nos legaram esta cidade. Observe tio, que bonito, o rio faz uma grande curva, como se desejasse voltar e saudar a todos vocês, e depois  retoma o seu caminho, indo sempre para o leste, em direção ao mar, em direção ao nascer do sol. O Paraíba faz uma bonita e grande volta tio Manoel, uma Volta Redonda, talvez, quem sabe, por um gesto de infinito amor e gratidão a todos vocês, pioneiros desta terra, a terra dos arigós.

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