O Agricultor e a Angústia

O agricultor urbano estava no mato capinando, ou carpindo, quando de repente, sentiu um incômodo no pé. Era uma pequenina pedra que havia entrado em sua bota, dificultando o caminhar. Parou, deixou a enxada de lado, e saiu caminhando pelo jovem bosque em crescimento, passando pelos ipês, jatobás, jacarandás, jequitibás, e tantas outras árvores tão amigas dele. Como já foi colocado anteriormente, muitos já devem saber, o agricultor urbano falava com árvores e bichos de um modo geral, falava também com as pessoas, quando estas estavam dispostas a ouvi-lo. Era um domingo, bem cedo, não haviam pessoas lá pelo mato, a maioria delas deviam estar em suas casas dormindo, ou tomando o café da manhã, ou fazendo outra coisa qualquer, isto não vinha ao caso, o que chamou a atenção do agricultor foi que ele ouviu uma voz:
- Olá, podemos conversar?
Ele sabia que não havia ninguém no mato, pensou que fosse uma de suas queridas árvores querendo falar com ele, mas as árvores estavam todas adormecidas, em estado de hibernação, aguardando a chegada da primavera. Pensou que devido ao cansaço estava ouvindo vozes, do além ou do aquém, ou que simplesmente aquilo tudo era fruto de sua imaginação. Seu sossego foi novamente interrompido:
- Podemos conversar agricultor urbano?
Não havia como negar e como evitar,  havia realmente alguém desejando muito falar com ele. No fundo, o agricultor sabia quem estava ali,  a conversa poderia ser longa, o agricultor parou, sentou-se sob a sombra de um ingá e timidamente perguntou:
- Quem é você e o que tanto deseja falar comigo?
- Você me conhece muito bem, sou sua angústia, ando do seu lado a muitos anos, porém você nunca me deu a devida atenção.
- Como assim?
- Bem, sempre que eu me aproximava você fugia, estava sempre fugindo. Na sua infância fugia mudando sempre de brinquedo, ou inventando jogos, ou lendo um sem número de revistas em quadrinhos, ou indo demasiadamente ao cinema, ou brincando até ao anoitecer em um monte de areia, ou ainda falando com o seu cachorro vira lata, o "camborde", ou subindo em árvores feito um macaco, ou ainda cuidando de suas galinhas, como você gostava daquelas galinhas, ou ainda assistindo televisão em demasia, correndo, jogando futebol... Na sua juventude fugia estudando, fugia sonhando em ganhar dinheiro, arrumar namoradas, comprar carro, fugia sonhando com a liberdade financeira, a independência dos pais... Houve uma época em que você fugiu de mim mudando de empregos, não parava em nenhum, até que um dia resolveu fazer uma fuga extraordinária, abandonou tudo e fugiu para uma cidade bem distante, bem ao sul, onde fazia muito frio no inverno. Nos últimos anos, já um pouco cansado de tanto fugir, simplesmente fingia que não me ouvia, ou tomava alguns comprimidos para dormir, ou ainda saia pelo mundo afora falando da felicidade, ensinando filosofias para preencher o vazio dos outros, completamente incapaz de entender e compreender o vazio que estava em você, ou ainda fugia através do pensamento, pensava, pensava, e pensava sem parar, até cansar. Em suma, você foi sempre um grande fujão!
O agricultor ouviu silenciosamente, não questionou, não gritou, sabia que a angústia estava coberta de razão, e esta certeza o fez humilde. Olhou calmamente para ela e falou:
- Estou aqui sentado angústia, debaixo deste pé de ingá, não quero e não posso mais fugir, minha infância e juventude já se foram, creio que ainda me restam alguns anos, portanto estou disposto a dialogar com você.
- Sabe agricultor, vocês humanos são um pouco estranhos, habito dentro de cada um de vocês, e no entanto todos vocês me evitam, fogem, se drogam, se corrompem, se matam, fazem um esforço titânico para me evitarem, e no entanto, eu apenas desejo conversar, mostrar um caminho...
O Agricultor ouvia calmamente. - Qual caminho você deseja mostrar? - Perguntou ele.
- O caminho que leva para dentro de você, para dentro do homem, de todos os homens.
-E porque eu deveria seguir por este caminho? - Perguntou o agricultor.
- Este caminho - respondeu a angústia - é o que todos procuram no fundo, desde o berço até o túmulo, é o anseio de toda a humanidade, a mais completa e plena felicidade.
- E qual a razão pela qual eu e os demais seres humanos sempre evitamos este caminho, que segundo sua concepção é tão bom? - Perguntou o agricultor.
- Basicamente vocês vivem em uma fase, em que não percebem a beleza e a glória que cada um representa, e vivem a terrível ilusão de achar que a felicidade está lá fora, sempre em um local distante, em um ponto qualquer do futuro, sempre longe do alcance das mãos, quando, na verdade, tudo está aqui e agora.
- Então estamos adormecidos, sem conseguirmos perceber a grandeza da vida, do momento presente? - retrucou o agricultor.
- Sim, - respondeu a angústia - e deste torpor, ou adormecimento nasce um outro sentimento, também tão conhecido, chamado ansiedade. Na fuga do presente, vocês vão deixando um grande vazio existencial, passam a olhar para os dias passados com muita tristeza, pois, sentem no íntimo que estes dias não foram vividos, e aí desejam fugir destas lembranças, e projetam-se desesperadamente no futuro, cheios de pressa, e simplesmente deixam de viver. Vocês estão cheios de raiva e medo, a raiva é amiga do ontem, e o medo é irmão do amanhã, porém, a felicidade, o amor, somente podem ser encontrados no dia de hoje, no presente, no aqui e no agora.
O agricultor ouvia muito atento, tudo aquilo fazia muito sentido para ele, era como se a angústia o estivesse desnudando, como se ela o conhecesse mais do que ele próprio.
- E como podemos nos libertar, vivermos em plenitude cada instante da vida? Sinto em mim a certeza que poderei ser feliz, que tudo depende da concretização dos meus sonhos, minha casa própria, minha independência financeira, prestígio, poder, a mulher amada...
- Tudo isto são mecanismos sutis criado por você e pelos demais, simplesmente por não conseguirem a felicidade no agora, e o medo de não sentirem-se felizes e aceitos é gigantesco, a dificuldade de entrega à vida é quase infinita, o sentimento de inadequação muitas vezes é imenso,  levando muitos ao limiar da loucura, no fundo, desculpe-me a franqueza, vocês são meio egocêntricos, e este sentimento os tornam cegos a tudo o que não esteja girando em torno de seus umbigos.
O agricultor refletiu um pouco, não sentiu raiva de sua angústia, a conversa estava agradável, estava pela primeira vez em sua vida ouvindo aquele sentimento, respeitando idéias tão contraditórias sem se impacientar. Perguntou: - Angustia, sobre este caminho, qual o seu papel nele, e caso eu resolva seguir por ele, onde chegarei?
- Sou apenas um sentimento tentando cumprir minha missão, que é ajudar no despertar de cada pessoa, muitas vezes passo por desagradável, inoportuna, porém, o que mais desejo é que vocês possam descobrir a infinita alegria e paz que existe e está dentro  e não fora. Portanto, quando vocês vão se afastando de mim, criando vínculos com minha irmã, a ilusão, atuo de forma que  possam sentir um pouco de dor, e quem sabe, desta forma, parar um pouquinho e refletir a respeito do sentido da vida. Habito no umbral da porta que leva para dentro, quem passar por mim e caminhar, vai encontrar inúmeros outros sentimentos, tais como o medo, a raiva, o desespero, a indiferença, todos estes nas primeiras fases da caminhada, e depois passarão a encontrar outros mais delicados como a esperança, a alegria, a amizade, a tolerância, o perdão, e por ai afora, até encontrar o mais cobiçado e profundo de todos os sentimentos humanos, que é o amor, que está lá no fim do caminho, aguardando pacientemente pela chegada de todos. Sou como uma seta, ou uma placa na estrada, mostro o caminho, porém não posso caminhar para você e os demais, isto é uma tarefa que cabe a cada um.
Naquele momento o agricultor sentiu que sua amiga, a angustia estava um pouco triste, ou mesmo melancólica, e percebeu que aquele sentimento tão negado em si mesmo, a angustia, no fundo desejava o seu infinito bem, era sua amiga, e esperava muito que ele tivesse a coragem de caminhar para dentro, ao encontro de si, e que, também como ele, o agricultor, ela, a angustia, sofria por ser tão incompreendida, e negada, sentindo-se incapaz de levá-lo ao encontro da paz.
- Agora que te conheço, minha amiga angustia, - disse o agricultor - reconheço que preciso de você, e agradeço por tudo o que tem feito por mim desde a minha infância, de hoje em diante, quem sabe,  conversaremos mais, visite-me sempre que desejar, farei um esforço sincero para não fugir . 
Sentado ainda sob a sombra do ingá, o agricultor retirou  a pedrinha que estava em sua bota, olhou para o lado e não mais encontrou a angústia, sua amiga, a pedrinha de sua alma, ela havia ido embora silenciosamente, deixando uma sensação de paz e bem estar. Levantou-se, sentindo-se leve como um passarinho e começou a caminhar, tentando encontrar o caminho descrito pela sua amiga, aquele que o levaria para dentro do seu coração.

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