Os Sapatos do Caminhoneiro Solitário

Era verão e o menino estava de férias; seu pai, o Caminhoneiro Solitário, faria naquele dia uma viagem curta  voltaria no mesmo dia  à cidade do Rio de Janeiro; desta forma, o menino e o seu irmão foram passear na grande carreta. 

Depois de algumas horas na estrada o Caminhoneiro Solitário e os seus filhos pararam para almoçar. O menino nunca havia entrado em um restaurante em sua vida, e a imagem daquele local foi tão marcante, que ele passou ao longo de toda a sua vida a ter uma relação quase santa com as mesas, os garçons, os pratos, o cheiro que vinha de algum local invisível, as conversas paralelas, os ventiladores no teto, as garrafas, os aventais...  o menino passou a amar todos os restaurantes do mundo.

Durante o almoço o menino disse ao pai que queria beber um refrigerante  aquela era uma rara oportunidade de degustar aquela maravilha cheia de bolhas. 

— Beba água meu filho, refrigerante não alimenta ninguém!  Retrucou o Caminhoneiro com a maior naturalidade, apontando a jarra com o precioso líquido sobre a mesa; que graça, naquela época a água era de graça. 

Aquela viagem, a passagem do caminhão sobre a ponte do Rio Guandu, o restaurante e aquele copo d'água acompanharam toda a vida do menino, como um filme encantado em sua mente, porém, no fundo do seu coração ficou uma pergunta sem resposta: "Por que o meu pai não me deu o refrigerante? Eu queria tanto, tanto...".

Passadas algumas décadas, enquanto tomava o seu café matinal, veio à mente do menino crescido a cena do copo d'água naquele restaurante de beira de estrada, e veio também a velha pergunta sem resposta:"Por que o meu pai não me deu o refrigerante?" Enquanto a cena passava pela sua mente como um curta metragem, um outro filme também antigo foi imediatamente projetado em sua tela mental, e neste, o menino de agora, como um espectador solitário na cozinha, observava um menino sentado no chão engraxando os sapatos de seu pai que estavam bem sujos — era uma iluminada manhã de domingo. 

O menino engraxou os calçados, e deixou que eles ficassem algum tempo sob o sol  até pareciam os jacarés do Pantanal , e alguns minutos depois passou em cada um deles a velha flanela, até que os velhos e surrados sapatos ficassem radiantes de tanto brilho. Neste momento o menino observou que os sapatos estavam muito gastos, e notou também que as solas estavam  baixas de tanto uso, e que nelas havia algo que, de tão particular, o seu pai não revelava a ninguém; o pequeno engraxate sorria com devoção ao constatar aquilo.

Novamente na cozinha, veio à mente do menino crescido a velha pergunta: "Por que o meu pai não me deu o refrigerante? Eu queria tanto, tanto...", e então, cinquenta anos depois, chegou finalmente a resposta: "Papai não me deu o refrigerante pelo mesmo motivo pelo qual ele não comprava novos sapatos a fim de substituir aqueles com buracos na sola". 

Compreendia agora o menino a lição daquele copo d'água, e do seus lábios veio o mesmo sorriso de devoção do pequeno engraxate de outrora, um sorriso de orgulho e respeito pela silenciosa dignidade do Caminhoneiro Solitário, que muitas vezes saía para trabalhar com sapatos furados, sem nenhum rancor ou reclamação — os sábios caminham com os sapatos da aceitação e da humildade.

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