O Oitavo Homem Errado

Eramos oito na reunião, e o clima estava quente; não conseguíamos chegar a nenhum consenso, no ar muitas palavras não ditas, e entre cada participante um mar de ressentimentos e sentimentos escondidos — como azes em um jogo de cartas. Eu estava muito aborrecido com tudo aquilo, e aos poucos, tal como um baiacu, fui inchando, inchando de raiva, de ressentimento, de mágoa, de intolerância...


Todos na reunião eram pessoas de bem, e eramos todos dirigentes de uma casa espiritual, discutindo assuntos pertinentes a organização. Mas o clima estava pesado — aquela situação já vinha se arrastando a algum tempo —, e entre os oito haviam alguns tentando impor sua vontade em relação aos demais — eu silenciosamente não aceitava aquilo.

Em certo momento, no meio da reunião, minha vontade foi virar a mesa, apontar o dedo para alguns de meus colegas — ou seriam meus inimigos viscerais — e dizer com todas as letras que eles estavam errados, todos errados, e que naquela mesa, era eu quem tinha a razão, era eu o conhecedor da verdade. 

Minha vontade era naquele momento de fúria contida, pregar para eles com todas as letras de todos os alfabetos da terra, as maravilhas dos 12 passos e das 12 tradições, dizer para cada um com toda veemência possível, que era urgente que cada um deles, o mais rapidamente possível, procurasse uma sala de 12 passos, a fim de conterem e educarem aquelas feras egoístas contidas em cada um deles — o programa é de atração e não de promoção. Para mim naquele momento, era patente que eu era o exemplo de serenidade, eu era o exemplo do homem a ser seguido  constantemente o meu ego infla

Ali estava eu cheio de razão e erudição, sentindo-me como um sábio no meio dos antigos povos bárbaros; ali estava eu não podendo, mais desejando muito incutir a verdade — a minha verdade — dentro daquelas mentes obtusas e incultas; ali estava eu, totalmente coberto de razão e inteiramente focado no erro dos demais. 

Duas horas depois a reunião finalmente terminou — glória Deus. Os cumprimentos finais foram frios, e então, cada um foi para o seu lado cuidar de sua vida. Já na rua, enquanto dirigia o carro, ficava ainda pensando na reunião — minha mente estava presa lá —, e tentando sair daquela atmosfera doentia, buscava uma conexão através da oração da serenidade, com o Poder Superior de minha concepção, na esperança de recobrar a serenidade.

A oração era sincera, mas a raiva que eu sentia era mais funda, e seu efeito deletério era mais forte que possíveis visões de paz que pudessem fluir através da oração. Mas mesmo com o descontrole e a raiva eu continuei orando e dirigindo — dirigir o meu carro é fácil, difícil é guiar as minhas emoções. 

Algum tempo depois, ainda com a cabeça quente — possivelmente mais quente que o motor —, eu parei o carro próximo a um curral onde pegaria um pouco de estrume para as plantas. Naquele momento eu já não orava mais, mas a raiva ainda estava lá, e lá no fundo vinha ainda a imagem à minha mente daquele sábio no meio daqueles sete homens errados. 

Sedento de um pouco de paz, tentei desligar-me daquele quadro mental, e olhei ao longe algumas galinhas que ciscavam, bem como alguns cavalos que pastavam mansamente sob uma enorme moita de bambu. De repente, rápido como um raio, veio novamente o quadro da reunião com todos os oito reunidos em torno da mesa, e com a visão veio de dentro de mim finalmente a resposta para toda aquela amargura naquela manhã de sábado: "Você é o oitavo homem errado, tão errado como todos os demais, e apesar de todos os passos, tradições e muitas 24 horas nas salas — quase um quarto de século de reuniões —, seu orgulho ainda governa com mãos de ferro a sua vida. A intolerância habita em ti assim como a semente dentro do fruto!"

Naquele instante, veio-me à mente a visão do Senhor Frank Buchman — fundador do Grupo Oxford, de onde, anos depois, nasceria a irmandade de AA —, que em 1908, sentado em um banco de uma capela no interior da Inglaterra, profundamente aborrecido com alguns companheiros, por eventos ocorridos em um reunião com membros de sua Igreja, cheio de mágoa, rancor, orgulho e ressentimento, ao ouvir uma mulher ao seu lado falar com simplicidade e cheia de fé sobre Deus, finalmente despertou espiritualmente: "Naquele instante Deus intercedeu por mim, e de mim foi feito um novo homem. Minha amargura se foi... Eu sabia que tinha que escrever seis cartas para aqueles homens a quem odiei e fazer as devidas reparações, eu era o sétimo homem errado" — Quarto , Oitavo e Nono Passos.

Mais de um século depois do Senhor Frank Buchman, eu finalmente descobri contemplando um bambual, que naquele sábado eu era o oitavo homem errado  Quarto Passo. As reparações aos meus pares já foram feitas  Oitavo e Nono Passos. Com relação ao orgulho e a intolerância, venho através da prontificação do Sexto Passo, e do desenvolvimento da humildade no Sétimo, pedindo ao Poder Superior, conforme eu O concebo, que os remova de mim.

Comentários

  1. Grata pelo relato,querido companheiro!!!
    Ñ sabia sobre o Sr.Frank Buchman..
    Feliz por ele ter te ajudado..Abçs..

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