Todos os Dias

Todos os dias, desde que eu tive consciência que existia, desde que eu era menino. Todos os dias, sorrateiramente ela visita-me.

Todos os dias, com chuva ou sol, inverno ou verão, todos os dias, gentilmente ela visita-me.

São mais de cinquenta anos ininterruptos, sem faltar um único dia sequer, todos os dias, sutilmente ela visita-me. 

A presença dela é tão constante em minha vida, que muitas vezes tenho a impressão que ela faz parte da minha humana natureza; todos os dias, anonimamente ela visita-me. 

A estada dela em minha casa incomoda-me, e quando ela chega, fico quieto, pensativo e triste; a visitante trás uma dor profunda, constante e indecifrável. Todos os dias, inesperadamente ela visita-me. 

É como se fosse uma carência, não sei se de pai, ou de mãe, ou de Deus, mas a dor que sinto é seguramente uma dor de ausência, uma dor de orfandade sem fim. Todos os dias, elegantemente ela visita-me. 

No bojo desta dor, quase companheira de tão próxima, quase amante de tão íntima, vou observando um vazio que ficou em tantos dias em que não consegui viver plenamente, e quanto mais sinto a vazia dor, mais a minha visitante me preenche. Todos os dias, caladamente ela visita-me. 

Tenho uma aguda necessidade de descobrir que dor é esta, e finalmente compreendê-la, para, quem sabe, não mais senti-la. Seria isso uma utopia? Todos os dias, repentinamente ela visita-me.

Se alguém perguntar-me se eu ando à procura do amor, responderei que não, pois eu não sou o que procuro, eu sou o procurado e sempre achado pela minha dor, minha cotidiana, silenciosa e presente dor. Todos os dias, abruptamente ela visita-me. 

Acordei pela manhã e minha dor, como sempre, estava lá; não sei se por edução, ou mesmo pela força do hábito e da convivência constante, dei a ela um bom dia e perguntei o que ela desejava de mim; eu sabia que ela não responderia, ela nunca respondeu. Mas finalmente aconteceu...

— Bom dia dor.

— Bom dia — respondeu surpreendentemente a dor. — Eu sou o porta voz da Criança ferida, reprimida, calada e escondida em você. Sou um oficial de justiça, e estou há mais de cinquenta anos tentando comunicar-lhe, que a sua Criança está viva e ao abandono, e que você, como homem, tem a responsabilidade e o dever de retirá-la do seu orfanato, e finalmente restituir a ela o que dela é de direito: A plena liberdade de ser e existir. Órfão de pai e mãe não é você, órfã é tão somente a sua Criança Interior, órfã tão somente de ti.

— Qual o seu nome dor?

— Muito prazer, meu nome é Angústia, sua criada! — Respondeu amorosamente a dor.

Cinquenta anos para finalmente decifrar o grande enigma. Não vejo a hora de encontrar a criança ferida em mim, retirá-lá do seu orfanato, e abraçá-la calorosamente com todas as forças do meu coração. De agora em diante, todos os dias, determinadamente, irei ao encontro dela, até avistá-la, para enfim, visitá-la, abraçá-la, e finalmente amá-la.

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