Dos Grilhões ao Estetoscópio: Cem Anos de Dor
Numa certa noite o ex-escravo sonhou com as saudosas savanas de sua África natal, onde no passado, viveu em liberdade. No sonho ele viu um ancião forjando metais - era um ferreiro - que dirigiu-se até ele dizendo-lhe: "Transforme as correntes que aprisionaram os seu pés por tantos anos em uma enxada, e presenteie o seu filho com ela. Sua dor será curada um dia."
Quando acordou no dia seguinte, lembrou-se do seu sonho, e então, achou em algum lugar de sua tapera as antigas correntes; possuindo em si o conhecimento ancestral de lidar com os metais, naquele mesmo dia, apesar da dor no peito, preparou uma forja, e nela, com aquela corrente e as forças que ainda possuía, fabricou uma enxada. Chamou então o seu filho, e lhe deu de presente dizendo-lhe: "Meu filho, tenho apenas isto para lhe ofertar, meus dias estão chegando ao fim."
O filho do ex-escravo, com o presente do pai, passou a trabalhar como lavrador, e ao longo de muitos anos ganhou o seu pão cuidando de campos alheios; possuía a enxada e a força de trabalho, nada mais do que isso, nem mesmo um palmo de terra que pudesse chamar de seu.
Os anos avançaram para o lavrador, e então em um dia, quando ele já estava cansado de toda uma vida arando a terra, adormeceu e sonhou... sonhou com as savanas da África, e no sonho ele viu um ancião forjando metais; viu também que do lado dele havia um homem familiar deitado na palha, com a mão sobre o peito: era o seu pai. O ferreiro dirigiu-se até ele dizendo-lhe: "Transforme a sua enxada em um martelo e presenteie o seu filho com ela. Precisamos curar a dor deste homem deitado na palha do chão."
No dia seguinte o lavrador recordou-se do seu sonho, e ficou tocado com aquilo. Pegou então sua velha enxada, improvisou uma forja e lá, ao longo de toda uma tarde, a transformou em um martelo. Chamou então seu filho e lhe deu de presente dizendo-lhe: "Meu filho, tenho apenas este martelo para lhe ofertar, meus dias estão chegando ao fim. Utilize-o para trabalhar, seja sempre honesto, ganhe o seu pão com o suor de seu rosto, e seja sempre fiel ao Senhor nosso Deus."
O filho do lavrador, com o presente do pai, aprendeu o ofício de carpinteiro, e ao longo de muitos anos utilizou aquele martelo, bem como muitas outras ferramentas inerentes à sua profissão, construindo telhados, portas, janelas, móveis, casas de madeira... O tempo foi passando, chegaram as filhas do carpinteiro, e um único filho, que possuía, desde a mais tenra idade, um verdadeiro fascínio pelos raros caminhões que via lá por onde morava, bem como pelo trem, que todos os dias passava perto da casa de seu pai, em direção à cidade do Rio de Janeiro.
Um dia, quando o filho do carpinteiro estava perto de completar a maioridade, o espírito do ferreiro em sonho visitou seu pai, que viu a savana e a forja; viu também um homem deitado na palha. O carpinteiro então ouviu o ferreiro dizer-lhe : "Transforme o seu antigo martelo em um minúsculo caminhão e presenteie o seu filho; ele saberá o que fazer com ele. Precisamos curar a dor deste homem deitado na palha do chão."
O carpinteiro construiu uma pequena forja, pegou o seu velho e amado martelo e o transformou com o seu jeito paciente e amoroso em uma miniatura de caminhão.
O filho do carpinteiro recebeu o presente do pai, e resoluto, vendeu algumas de suas galinhas e comprou na estação uma passagem de trem para o Rio de Janeiro, para onde foi inicialmente a serviço do exército, e posteriormente da vida. Eram tempos de guerra, e o filho do carpinteiro, como tantos outros, um dia cruzou o grande oceano e foi guerrear pelos campos da Itália. Ao retornar para o Brasil já conhecia bastante de veículos motorizados, e então, por ofício, passou a ganhar o seu pão dirigindo inicialmente ônibus urbanos na capital dos cariocas, e posteriormente, por toda uma vida, os caminhões que ele tanto amava por todos os rincões do país.
Veio a aposentadoria e o caminhoneiro continuou dirigindo, não mais os caminhões, mas tão somente a sua própria vida. Numa certa noite, depois de adormecer, ele teve um sonho... No sonho ele viu imensos campos, - não eram campos de guerra, eram as savanas africanas - e no campo ele viu um ancião forjando metais, e ao seu lado, na palha do chão um homem deitado. O velho ferreiro olhou para o caminhoneiro, e sorrindo disse-lhe: "Transforme o seu pequenino caminhão em um livro e presenteie o seu filho mais novo. Precisamos curar a dor deste homem deitado na palha do chão."
O caminhoneiro, sem grandes dificuldades, transformou a miniatura de seu amado caminhão em um simbólico livro.
Recebido do pai o presente, o filho do caminhoneiro viajou também para Rio de Janeiro, agora em um moderno ônibus, e por lá estudou, aprendeu a ciência de analisar sistemas, trabalhou, namorou, casou, viveu.... Vieram os filhos e o tempo, que também avançou para ele; num dia ensolarado, no alto de um morro, enquanto plantava árvores e ouvia os passarinhos, ele sentou-se sob a sombra de um ipê para descansar, e enquanto descansava acabou cochilando, e então ele também sonhou com as savanas da África... Viu no seu sonho um velho ferreiro, viu uma forja, viu um homem deitado no chão... O ferreiro chegou até ele e lhe falou: "Transforme o livro recebido de seu pai em um estetoscópio e presenteie o seu filho mais novo com ele. Precisamos curar a dor deste homem deitado na palha do chão."
O analista de sistemas sob a árvore despertou, e à sua mente veio o sonho. Conseguia lembrar-se do ferreiro, do homem sobre a palha, da savana e de um certo estetoscópio... Mas como era bastante racional, não conseguiu registrar tudo; pensou que deveria comprar um bom estetoscópio e dar de presente para a sua mulher que era médica. Devia ser este o sinal do seu sonho, pensou ele lá no alto do morro.
Quando contou o seu sonho para a esposa, ela achou aquilo tudo muito curioso, e então, com a sabedoria e a intuição das mulheres, percebeu que o sonho estava correto, porém a percepção do analista com relação a ele estava errada - pensava demais o marido. O estetoscópio deveria mesmo chegar um dia às mãos do menino, que por aqueles dias havia tomado a decisão - após uma viagem - de estudar medicina.
- Não compre o estetoscópio meu bem - falou a esposa -, no momento adequado ele chegará.
Se o tataravô do menino chegou ao Brasil atravessando o atlântico nos porões de um navio negreiro, seu estetoscópio - presente do tio, irmão gêmeo da mãe -, veio sobre o mesmo atlântico, das distantes terras da América do Norte, porém, dentro de um confortável avião, trazido carinhosamente por um descendente de espanhol.
Se o tataravô do menino chegou ao Brasil atravessando o atlântico nos porões de um navio negreiro, seu estetoscópio - presente do tio, irmão gêmeo da mãe -, veio sobre o mesmo atlântico, das distantes terras da América do Norte, porém, dentro de um confortável avião, trazido carinhosamente por um descendente de espanhol.
Desde o último sonho sob o pé do ipê roxo, sete anos se passaram... Lá vai agora o Doutor, o descendente de escravos, todo feliz e todo de branco, para o seu primeiro plantão no hospital público. É dezembro ainda, fim de ano, possivelmente não vai encontrar nenhum paciente por lá, "ninguém fica mesmo doente entre o natal e o ano novo", pensou o jovem médico.
Chega finalmente ao hospital, seu coração bate acelerado, tudo novo, uma nova vida pela frente. Poucos minutos depois uma atendente bate à sala dos médicos.
- Doutor Lucas?
- Sim...
- Temos na emergência um paciente precisando de um médico.
O Doutor prontamente vai para lá. Chegando, encontra um ancião em uma maca. Parecia um destes trabalhadores que passaram toda a vida no campo, ou ainda realizando trabalhos braçais; sua pele era negra, seu aspecto era a de um homem com idade muito, muito avançada, e suas mãos calejadas estavam alojadas sobre o peito.
O Doutor olhou para ele com todo o carinho; aquele homem pobre e sofrido parecia-lhe mesmo familiar, estranho aquilo...
- Boa noite Senhor - falou o médico.
- Boa noite Doutor... espero pelo Senhor a um longo tempo.
O Jovem médico percebeu que a emergência estava cheia; ele deveria mesmo ter esperado por horas...
O Jovem médico percebeu que a emergência estava cheia; ele deveria mesmo ter esperado por horas...
- Em que posso ajudá-lo, o que o Senhor está sentindo?
- Sou um escravo Doutor...
- Escravo?
- Sim Doutor, um escravo de uma grande dor que sinto a muitos e muitos anos, uma dor secular, uma grande dor...
- Onde dói Senhor?
- Dói aqui no peito Doutor -, respondeu aquele homem, deitado ali no hospital, em uma maca no chão.
O jovem Doutor olhou então ao redor, e viu no que deveria ser uma bem organizada emergência hospitalar, um verdadeiro teatro de dores humanas, algo muito parecido com as antigas senzalas por onde viveram os seus ancestrais, os escravos africanos.
Após aquele primeiro e inesquecível atendimento, o Doutor retornou à sala, e no corredor, caminhando solitariamente, chorou um choro aparentemente sem lágrimas, um destes choros de médicos, que por serem aqueles responsáveis pelas curas das dores humanas, que são muitas, choram para dentro de si mesmos, irrigando secretamente com a chuva de seus olhos as férteis terras de seus próprios corações. As invisíveis lágrimas... creio que ética médica, ou quem sabe ainda, o que é mais provável... amor.
Após aquele primeiro e inesquecível atendimento, o Doutor retornou à sala, e no corredor, caminhando solitariamente, chorou um choro aparentemente sem lágrimas, um destes choros de médicos, que por serem aqueles responsáveis pelas curas das dores humanas, que são muitas, choram para dentro de si mesmos, irrigando secretamente com a chuva de seus olhos as férteis terras de seus próprios corações. As invisíveis lágrimas... creio que ética médica, ou quem sabe ainda, o que é mais provável... amor.
Jamais meu filho, jamais Doutor Lucas Motta, jamais... jamais esqueça suas raízes, e quando o ferreiro visitá-lo no futuro, descerrando as savanas de seus avós para você, abra as portas do seu coração para ele, e transforme também o seu valioso e merecido estetoscópio em algo grandioso para aqueles que ainda virão.
Comentários
Postar um comentário