Um Sopro de Deus


Havia uma grande pedra no fundo daquele poço, onde aquele homem muitas vezes passava dias e dias sentado, sempre calado, triste, melancólico, nostálgico, encolhidinho, sofrido...

Ele estava cansado de viver dentro poço, o poço das suas próprias emoções, onde habitava medo, angústia, melancolia, solidão, ressentimento, indiferença e uma infinidade de sentimentos negativos. 

Descobriu que estava no poço porque todos aqueles sentimentos do poço eram na verdade as suas próprias emoções, ou seja, ele não havia sido colocado lá por ninguém, no fundo do poço ele era poço e fundo também.

Com o passar do tempo ele descobriu que não fazia mais sentido estar ali dentro, já não tinha mais medo, já não sentia mais solidão, angústia ou indiferença, ele estava mudado e precisava então mudar de ambiente, sentia-se agora como um inquilino em casa alheia, precisava sair do poço, sua alma dizia isto para ele. 

No fundo daquele poço ele era o seu próprio e pequenino deus, e com o tempo percebeu que este deus não possuía forças suficientes para tirá-lo de lá, e que em função da devoção e adoração por este deus tão minúsculo, seu orgulho humano, ele jamais conseguiria sair dali.

Foi aos poucos então abrindo mão deste minúsculo e arrogante deus, e com o passar dos anos, ou quem sabe mesmo das eras, começou a cultivar em si a esperança de que poderia sair, começou a desenvolver a fé em algo superior a ele mesmo, um Deus conforme sua nova concepção de olhar para o mundo e para a vida, um Deus muito bom e poderoso, e a partir deste dia começou a pedir a Ele uma forma de sair dali.

O poço era fundo, muito fundo, era largo e escuro, seria impossível tentar subir pelas suas lisas paredes, como sair então? Dia após dia, sentado em sua grande pedra, ele pedia ao seu Deus uma maneira de encontrar uma saída, e suas rogativas eram sinceras e profundas, "Ajude-me a sair meu Deus, ajude-me a sair..."

Com o tempo ele notou que bexigas infláveis e longos cordões apareciam pelo chão do fundo do poço, próximos à grande pedra, bexigas e fios que não estavam lá até então, ele rezava e pedia, e quanto mais ele rogava, mais bexigas e cordões apareciam ao redor da grande pedra. Estaria ele ficando louco, ou o seu Deus estaria brincando com ele, ou quem sabe organizando uma festa com aquelas bexigas coloridas, que doideira....

Um dia, sentado lá no alto de sua pedra, ele dormiu e sonhou, e no sonho ele estava em um lugar tão bonito, estava livre, e então lá de dentro da sua liberdade de sonho, uma voz falou docemente ao seu ouvido: "Utilize as bexigas para sair do poço...".

O homem acordou, lembrou-se do seu sonho, e achou que aquilo não era plausível, algo sem pé nem cabeça, como seria possível sair daquele poço profundo utilizando bexigas, onde já se viu uma coisa assim, onde já se viu...

Passado algum tempo, o homem dormiu e novamente estava naquele vale tão bonito, e mais uma vez a voz falou docemente com ele: "Meu filho, utilize as bexigas e os cordões para sair do poço...". E por infinitas noites ele rezou e sonhou, e sempre o mesmo sonho, e sempre a mesma voz, e sempre a mesma mensagem: Bexigas, bexigas, cordões, bexigas....

Quando acordava ficava o dia todo pensando naquilo, pegava as bexigas, analisava cada uma delas, tentou fazer uma grande corda amarrando aqueles cordões, mas não fazia sentido aquilo, as paredes do poço eram muito altas, impossível qualquer escalada, tudo era muito doido, o sonho era doido, as bexigas eram doidas, o poço era doido, tudo muito doido, e ele provavelmente um doido também, tudo doido, vida doida...

Em um determinado dia, já sem foças para rezar, já desacreditando do seu Deus e da possibilidade de sair dali, ele simplesmente relaxou e entregou os pontos, não conseguiria jamais sair, aceitaria aquilo, não ficaria revoltado, o que não tem remédio remediado está, e então naquele relaxamento da entrega ele adormeceu, e novamente ouviu a mesma voz... "Filho, ouça com atenção para não esquecer: Sopre as bexigas, todas elas, sopre bastante, sopre...".

Despertou e lembrou-se do sopro, e então, descendo de sua amada e amiga pedra, afoitamente foi enchendo cada uma daquelas bexigas, passou horas e horas enchendo as bolas, e depois de muito tempo, seu poço estava infestado de bexigas espalhadas por todos os lados. Estava exausto, havia inflado milhares delas, e nada aconteceu, continuava no poço, agora tomado de bexigas cheias de ar por todos os cantos. 

Sentiu-se um tolo, e furioso chutou e estourou cada uma delas, aquilo era um engodo, e foi estourando as pobres bexigas até a exaustão, até não aguentar mais, até chorar... O choro o relaxou, sentiu então uma imensa paz, uma grande alegria dentro de si, e então naquele estado de profundo silêncio interior, ouviu de uma forma inesquecível aquela voz mais uma vez vinda bem de dentro do seu coração: "Meu filho, encha cada bola com o sopro do amor que habita em ti, pois o amor é leve, muito leve, mais leve que os passarinhos do céu, mais leve e suave que os ventos do outono".

Sentindo em si uma profunda alegria, ele foi novamente enchendo cada bexiga, calmamente, soprando amor para dentro delas, e percebeu que as bexigas flutuavam, um encanto, uma graça, foi enchendo e enchendo, ébrio de felicidade, soprando um sopro leve, um sopro cheio de paz, e este tempo de soprar foi breve, tão breve como a própria vida, um sopro de menino, e para que as bexigas não subissem para o céu de Deus, foi amarrando com os cordões cada uma delas lá na pedra amiga do fundo do seu poço. 

Até que finalmente, naquele inesquecível dia perdido na noite dos tempos, percebeu a pedra querida começando a mover-se, subiu então nela mais uma vez e foram ambos subindo, ganhando as alturas, e quanto mais subia mais se distanciava da sua sua prisão, e continuou subindo feliz. As paisagens começaram a mudar, ele foi subindo, sentindo a grandiosidade do viver e do existir, e ficou mesmo fascinado em saber que o amor era mesmo a força mais poderosa e leve que existe, um sentimento capaz de mover pedras e montanhas, algo mais leve mesmo que o próprio ar, uma maravilha, algo assim como um sopro, um sopro de Deus.




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