O Sorriso do Sebastião

Centro do Rio de Janeiro
Era domingo à noite, e debaixo de muita chuva o Agricultor Urbano chegou ao Rio de Janeiro. Não era muito comum chover em agosto, mas era um bom sinal, certamente a primavera chegaria mais cedo, trazendo o verde e as flores, renovando a beleza do viver. Choveu noite a dentro sem parar, mais parecia as águas de março, o Agricultor amava a chuva, e dormir ouvindo os pingos caindo sobre o telhado da casa era para ele uma benção, um presente divino.

Amanheceu, segunda-feira e ainda chovia bastante. Adeus romantismo de poeta, a realidade bateu à porta, estava frio e ventava muito, o tempo convidava para ficar na cama sonhando debaixo das cobertas, "onde já se viu meu Deus do céu, segunda-feira com chuva", bradava o homem velho dentro do Agricultor. Ele levantou da cama meio a contra gosto, preparou e tomou o seu café, e a chuva caindo no telhado; tomou seu banho e a chuva caindo no telhado; arrumou-se, estava pronto para sair, mais a chuva teimosamente continuava caindo sobre o telhado de sua casa, caia também sobre o telhado do vizinho da casa um, da casa dois, da casa três, caia enfim sobre todos os telhados da cidade do Rio de Janeiro, que era agora um rio vertical caindo em torrentes contínuas do céu cor de chumbo de agosto.

O Agricultor andava pela casa olhando para fora, desejando que a chuva fosse embora, já havia orado, cantado ponto, rezado o credo, havia feito inúmeros louvores,  já havia mesmo evocado os espíritos do espaço, entoou com todo o ardor do seu coração o OM que aprendeu nas aulas de Yoga, já havia meditado diante da imagem do Buda ali perto e nada, chovia e chovia. O amigo da urbana residência acordou para caminhar, olhou para fora e desistiu, num dia como aquele caminhar era impossível, remar e navegar era bem mais provável e preciso. O Agricultor olhou para o amigo e olhou para fora e para a chuva pela enésima vez, e então sua memória voltou no tempo... 

Chovia bastante naquele dia de verão, era bem cedo, o filho acordou e foi tomar o seu café, notando que seu pai já estava por ali pronto para ir trabalhar. O filho olhou para fora, naquele dia certamente seu genitor que era sempre tão pontual e responsável chegaria mais tarde ao seu trabalho, seria muito difícil sair de casa, seu velho teria que andar até o ponto de ônibus, a rua estava cheia de lama, não havia asfalto ainda, seu pai era humano, naquele dia, pensava ele, quebraria suas regras e sairia mais tarde de sua casa. O pai tomou o seu café dirigindo-se em seguida à porta, olhou ainda para trás e abriu um enorme e profundo sorriso para o filho caçula e matutino, escancarou a porta e sem guarda chuva, feliz da vida, saiu tranquilamente caminhando sob a chuva.

Os filhos do Agricultor não estavam por perto, somente o seu amigo urbano, então ele abriu um sorriso de Sebastião para ele e com a alma contente abriu a porta e o guarda chuva, abriu sobretudo o coração, lembrando-se do seu velho com imenso carinho e amor,  e saiu desviando-se das poças por aquelas ruas encharcadas do bairro de Botafogo, ajustando os seus passos, recebendo lufadas de vento frio no rosto, sempre em direção à estação do Metrô.  

Naquele dia chuvoso e frio de fim de agosto, na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o filho do Sebastião, com o sorriso e o jeito do Sebastião, foi um pouco Sebastião também.


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