A Catedral do Agricultor

Naquela manhã, andando pela mata nos fundos do seu quintal, o Agricultor Urbano ficou indignado, enfurecido, muito triste, aborrecido... O vizinho do lado, após uma obra, resolveu despejar lá dentro daquele bosque o seu entulho, espalhando pedras, restos de tijolos e telhas  dentre outras coisas , por todos os lados. 

Ao longo daquele dia o Agricultor passava por ali e olhava aquilo e logo vinha à sua mente aquela ação nefasta, "que vizinho inconsciente, que vizinho porco, que vizinho que não alugava uma caçamba, que vizinho que...". Nos dias seguintes a visão negativa do vizinho foi passando, ele era tão humano quanto ele mesmo  pensava o Agricultor , mas o entulho físico e a mágoa continuavam lá, e aquilo o incomodava, precisava fazer alguma coisa. 

Então, veio à sua mente a imagem da Santa; ele tinha devoção e carinho por ela e, desde criança aprendeu através de sua mãe a amá-la, e naquele instante o seu coração disse a ele o que deveria fazer com aquele entulho jogado ali. Nos sábados seguintes, antes de começar a lidar com as plantas e com a terra, bem cedinho, ele trabalhava por uma hora, hora e meia, e nesta atividade ia aquecendo o seu corpo e adoçando a sua alma, carregando as telhas e as empilhando com todo o carinho, sob a sombra de uma mangueira amiga, uma por uma, fazendo uma base retangular, e dentro desta, ia colocando todo aquele entulho que ele pacientemente carregava com um velho balde; seus vira latas o acompanhavam, provavelmente gostavam da Santa também. 

Ele fazia aquilo tudo como um exercício de amor, devoção e perdão, e quanto mais baldes de entulho carregava, mais desentulhava o seu coração da mágoa do seu vizinho, e quanto mais telhas transportava, mais alegre ficava, e pouco a pouco a construção foi tomando forma e isto enchia o seu ser de contentamento e ânimo para continuar. Depois da base pronta, subiu ainda as paredes laterais com as telhas, e finalmente, com algumas ripas colhidas no entulho, concluiu a cobertura usando ainda as telhas restantes. 

Depois de alguns sábados, sua obra estava pronta, seu coração estava livre da mágoa, e o quintal livre dos entulhos e, que maravilha, o seu vizinho estava definitivamente perdoado. Ele então olhou para aquele construção, sua pequenina igreja,  que era tão simples, rústica e tão minúscula, que ele jamais poderia entrar dentro dela e pisar no seu chão, mas isto não tinha importância, pois no fundo, aquela catedral era assim que ele a via com os seus olhos  construída com suas próprias mãos morava bem dentro da sua alma. 

Então, naquela noite fria de sábado de agosto, sob a luz das estrelas, depois das dez da noite, foi ele solitariamente até lá inaugurar a sua igreja; os seus vira-latas, talvez pelo avançado da hora não o acompanharam, bem como não foi convidada nenhuma autoridade civil, militar ou eclesiástica.

Acendeu então uma vela e fez a oração que aprendeu com sua amada mãe... A catedral pequenina, com aquela única vela ficou toda iluminada, e aquela luz irradiou-se para o alto trazendo para ele paz e contentamento; lágrimas brotaram em seus olhos, como se naquele instante sua mãe e todos os seus entes mais queridos estivem por ali orando e vibrando; era muita luz, muita paz e muito amor. Ele somente conseguia sentir, e o seu sentimento dizia para ele que muito provavelmente a Santa também estava lá na inauguração da sua catedral, era muita honra, muita bondade, muito amor e muita Graça, coisa dos Santos, coisa de Deus.

Ficou para ele naquela noite inesquecível a imagem da luz em direção ao alto, iluminando a mangueira, iluminado o jamelão, iluminando todo o entorno e as árvores próximas, iluminando sobretudo sua alma e mostrando para ele o caminho a seguir, o caminho da retidão, perdão, trabalho, simplicidade e amor, um caminho muitas vezes dificílimo de caminhar. 

Naquele instante, lá do fundo de seu coração, veio da infância a imagem de sua mãe ensinando para ele aquela oração maravilhosa, transmitida por tantas mães para tantos filhos a séculos... 

Ave Maria cheia de Graça, o Senhor é convosco... 

Comentários

  1. Não tenho palavras! A luz iluminou até aqui!
    Querido Agricultor Urbano, o caminho estreito e dificílimo é o certo,e o que queremos seguir! Glória a Deus e às Santas Mães, Avós, Tias, quem nos ensina a ter fé!

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