O Amor Nos Tempos das Louças

É cedo e faz muito frio, louças sujas sobre a pia, preciso ir para o campo cuidar das árvores, minhas eternas amadas, a amada dorme.

A ansiedade é grande, os vira-latas já estão latindo, querem ir para o campo também, louças sujas sobre a pia, preciso lavar estas louças, preciso merecer o amor da amada, a amada dorme.

Começo a lavar as louças sujas de hoje, que foram as louças limpas de ontem, louças que passaram pelas mãos da amada, que com o seu amado jeito preparou o jantar que nutriu o meu corpo, meu coração e a minha alma, a amada dorme.

Os vira-latas estão esperando resignados debaixo da mesa, querem ir logo para o campo; a água da pia  está muito fria, vou lavando bem devagar, poupando as mãos da amada que são belas e sensíveis;  mãos que tocam e curam, mãos que lavam e tecem, mãos que amparam; mãos que mais se parecem ferramentas divinas, mãos que acenam triste quando parto; mãos que se abrem felizes quando eu regresso, mãos da amada, a amada dorme.

Tudo lavado, tudo limpo, a amada gosta de café aos domingos, somente aos domingos, somente um pouquinho, coisas da amada; o café está na mesa, o pão está na mesa, o amor está na mesa; agora posso partir para o campo com a alma e as louças lavadas, os vira-latas percebem e começam a latir de alegria, são sensíveis estes bichos; por favor, por favor, latam baixinho, não acordem a nossa amada,  a amada dorme.

Estou no campo sob o sol e sob o céu, planto, cavo, caminho, ando para baixo e para cima, vou vivendo a manhã de conformidade com o meu coração, minha casa está ali tão próxima, casa onde habita minha amada, a amada dorme.

Trabalhei bastante, plantei árvores, abracei e conversei com muitas delas, coisas de ser amado para outras amadas, estou tão feliz, está na hora de voltar para casa; olhares esmeraldinos me aguardam, Miúda, Nina e Tição já foram embora, instinto canino, eles já sabem, intuições do amor, eu também já sei, a amada não dorme mais. 

Estou chegando, descendo as escadas do quintal, os vira-latas chegaram antes, eles também amam a amada, ouço a voz dela falando com eles, eles respondem latindo; a amada fala com os bichos, com as plantas, com os pombos das praças; fala com os pobres e com os ricos, fala com todos, creio que fala mesmo com Deus, a amada não dorme mais.

Olho para a amada que olha para mim e nenhuma palavra é trocada, tudo já vem sendo dito a milênios, a linguagem do coração é muda e plena; o olhar verde está lá, olhar que eu tanto amo, olhar que tanto me diz, olhar que traduz para mim o indecifrável infinito, olhar que como uma bússola aponta para mim o caminho da retidão, o norte de Deus, a amada não dorme mais.

É cedo e faz muito frio, vasilhas limpas sobre a pia, preciso cultivar os  campos do meu coração e cuidar da amada com muito carinho, pois a amada não dorme mais; a amada despertou, e despertando despertou também o meu coração, dando alforria à minha solidão, enchendo meus celeiros de alegria e paz, libertando o amado que existe em mim.

Um prato com salada de frutas sobre a mesa adocicado com mel, é muito doce, é muito belo, coisas da amada que mora em minha casa, coisas do amado que mora em mim, coisas do amor que mora em nós, amor sem palavras.

Comentários

  1. Lendo...imaginando.....sonhando!!
    Que maravilha de amor pela "amada"!! Encantador...simples assim ...

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