O Agricultor Urbano e o Seu Ego Falante
Era uma fria manhã de outono, e o Agricultor Urbano, como de hábito, havia levantado muito cedo a fim de cuidar de suas amadas árvores. Ele não estava solitário na cozinha, pelas imediações, como costumeiramente, seus vira latas aguardavam ansiosamente o momento de partirem para o campo. Seu habitual silêncio — o Agricultor Urbano era de pouquíssimas palavras — e seus solitários pensamentos foram interrompidos pela visita do seu velho Ego Falante, que entrou sem mesmo ser convidado, como já era de praxe.
— Bom dia Agricultor! — falou o seu velho Ego falante.
— Bom dia Ego Falante — respondeu silenciosamente o Agricultor, enquanto esperava a fervura da água do seu café. Enquanto a água não entrava no seu natural processo de ebulição, as palavras de seu Ego Falante já estavam quase em estado de efervescência...
— Agricultor, Agricultor... hoje particurlamente está muito frio, e você tem trabalhado muito nos últimos dias. Suas mudas já foram todas plantadas na primavera e no verão passados; o aceiro protetor para o inverno já está pronto; nesta época do ano existem poucas sementes para você coletar por aí afora; o preparo para as novas mudas no seu viveiro somente terá início lá pelo mês de agosto, que ainda está distante no tempo. Portanto meu amigo, sugiro para você não ir para o campo hoje, não é necessário. Fique no conforto de sua casa, assista ao telejornal matinal, volte para debaixo de suas cobertas, "fique à toa" homem de Deus, "fique à toa" hoje, você merece alguns dias de descanso.
A água finalmente havia fervido e estava sendo passada no coador, e o Agricultor no seu silêncio continuava ouvindo aquela incansável voz do seu Ego falante.
— Agricultor, Agricultor... fique em casa! Você não tem ouvido os apelos diários neste sentido? O mundo vive a grande pandemia do Corona Vírus, e a recomendação geral, a recomendação internacional, a recomendação mundial, é para que todos fiquem em suas casa, portanto caro amigo, não faz muito sentido você ir lá para o mato. Fique em casa!
O Agricultor já havia tomado o seu café, e a conversa do seu Ego Falante continuava.
— Agricultor, Agricultor... o seu trabalho é completamente anônimo e totalmente desconhecido por todos, exceto, é claro, pelos diminutos passarinhos do céu; para cada árvore que você planta, milhares de outras são deitadas ao chão mundo afora; você age como um grande e solitário tolo que, com sua enxada e cavadeira em suas mãos, sai pelos campos como um Quixote moderno tentando combater o incontrolável aquecimento global. Agricultor, Agricultor Urbano... Fique em casa!
Apesar de toda aquela infinita e eloquente conversa do seu velho Ego Falante, saiu de uma forma muito tranquila e silenciosa da cozinha o Agricultor, e na fria varanda dos fundos de sua casa, calçou suas perneiras e suas botas, e olhou para a escada rústica com aqueles dezessete degraus, que o levaria para as proximidades do campo um pouco mais além. Seu Ego o acompanhou até a varanda, e na varanda continuou falando em seus ouvidos, falando, falando...
Devidamente pronto para sair, o Agricultor olhou para os seus vira latas, e através do simples e costumeiro olhar, seus amigos o precederam escada acima. Olhou também para o seu velho Ego Falante, sem nenhuma crítica ou censura, e no seu olhar havia compreensão e tolerância. Houve um tempo em que ele discutia com o seu Ego; houve um tempo em que ele gritava com o seu Ego, pedindo para que ele se calasse; houve um tempo em que ele achava que o seu Ego era o próprio demônio, e como tal, queria mesmo mandá-lo de volta para os quintos dos infernos, mas todo aquele tempo havia passado.
O olhar do Agricultor para o seu Ego Falante era tão profundo e penetrante, um olhar que mais se assemelhava ao olhar de um amoroso pai para o seu próprio filho, que na extraordinária força e retidão que emanavam de seus olhos, seu Ego Falante foi pouco a pouco transformando-se em uma criança em fase de desenvolvimento, uma criança inocente que precisava do seu carinho, da sua orientação e do seu próprio exemplo. Era tanto amor naquele olhar, que a criança finalmente calou-se, e na quietude e em paz finalmente adormeceu.
Silenciosamente o Agricultor subiu aqueles degraus, e um pouco mais além, encheu um regador com água e pegou a sua enxada. Andou duas centenas de metros até o alto de uma colina, onde regou a muda de seu amigo recém plantado, o Bambu Gigante, e então, para aquecer um pouco o seu corpo naquela fria manhã — seu coração já estava devidamente aquecido — , começou a carpir o capim ao longo da cerca. Seus vira latas, como silenciosos anjos protetores, estavam na sua companhia.
Maravilhoso! Meu amigo, amo os seus textos. Me dão forças para continuar...
ResponderExcluirSó por hoje eu sou a pessoa mais importante da minha vida. Obrigada.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQuerido Agricultor Urbano, sua narrativa emocionante e perturbadora da batalha silenciosa que travamos diariamente com o ego. Me remete a refletir no conceito Comprometimento ... Gratidão!
ResponderExcluirMaravilhoso texto, eu converso muito com meu ego falante.
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