Uma Nobre Senhora

No vale da sombra - não sei se da morte -, aquele homem chorava suas mágoas, tudo era ódio, rancor, ressentimento, medo, mágoa, tudo era desolação... Seus pensamentos eram todos negativos e presos ao passado, ao seu redor outros no mesmo sofrimento interior, de forma que não havia nenhuma solidariedade ali, era mesmo cada um para si, cada um olhando para o seu próprio umbigo e chafurdando em seu próprio inferno interior.

Aquele homem estava cansado daquilo tudo, já havia tentado de várias maneiras evadir-se daquele local, mas por mais esforço que empreendesse não conseguia sair, era como se estivesse de alguma forma imantado àquele ambiente, ele trazia em si o mais profundo cansaço, como se estivesse mesmo  arrastando pesadas correntes...

Naquele local havia muito choro e ranger de dentes, e o homem tinha a impressão de que viveria ali para sempre, e esta sensação da dor sem fim, da dor eterna, era desesperante, cada segundo vivido ali, tal a intensidade do sofrimento, transformava cada instante em séculos.

Então, depois de muito tempo andando por aqueles áridos campos, um dia o homem avistou uma Senhora de rara beleza e leveza, digamos assim uma Nobre Senhora, notou também que conforme aquela Nobre Senhora passava, muitos daqueles que estavam ali naquele vale tão desolador dirigiam-se a ela pedindo ajuda, e aquele homem observava aquilo, e observava...

Ele tinha muita vontade de aproximar-se também, mas sentia-se tão indigno, tão mesquinho, tão vil, tão pequeno, que achava que a Nobre Senhora sequer olharia para ele.

Contudo, um dia ele encheu-se de determinação e aproximou-se, sua dor era muito grande, ele não aguentava mais, chegou o mais perto que pode, e então buscou dentro dele toda a sua força, buscou coragem para olhar, e então olhou, e olhando murmurou...

- Minha Nobre Senhora, minha Nobre Senhora...

- Pois não meu filho, respondeu a Nobre senhora.

- Desculpe incomodá-la, não sou digno de olhar ti.

- Largue disto, todos nós somos dignos, todos nós somos filhos do eterno.

- Perdoe-me mais uma vez... Gostaria tanto de sair daqui, porém não sei como.

- O que mais te aflige?

- Meus pensamentos são muito negativos, trago dentro de mim medo, ódio, raiva, ressentimento, sinto-me como o mais insignificante de todos os seres da criação, creio mesmo que mereço estar aqui, achou que sou uma alma penada...

- Nenhum mal é eterno meu filho, tudo passa...

- Minha Nobre Senhora, aqui é o inferno, o inferno de Dante?

- O inferno de Dante, ou outros infernos quaisquer, geralmente são criados pelos nossos próprios pensamentos, palavras e ações meu filho.

- Sinto raiva das pessoas que estão aqui minha Nobre senhora, todas elas me incomodam, não consigo gostar de nenhuma delas, não consigo gostar de mim, não consigo gostar de nada, de nada..

- Não gosta mesmo de nada meu filho?

- Bem... Das pessoas não gosto muito, mas confesso que às vezes vejo ao longe, bem ao longe, uns pássaros voando pelo céu, e isto trás um pouco de paz, logo acho que gosto dos pássaros que voam pelo céu...

- Gosta de mais alguma coisa?

- Avisto, minha Nobre Senhora, bem distante daqui algumas árvores, árvores bonitas, muito bonitas, então creio que gosto das árvores também, mas infelizmente as árvores não crescem neste campo onde estou.

- Meu filho, o gostar é uma chave poderosa que pode abrir inúmeras portas, pode inclusive abrir a porta que te leva deste seu inferno pessoal.

- Ah minha Nobre Senhora, como eu gostaria de sair daqui, como eu gostaria...

- Já a muito tempo passo por aqui e te observo ao longe querendo aproximar-se, porem, sempre fugindo.. Por que não veio falar comigo antes?

- Orgulho minha Nobre Senhora. Sentia-me tão superior, e nesta superioridade doentia não era capaz de pedir ajuda para ninguém, é como se este sentimento fosse o próprio cadeado de minha prisão.

- E o que mudou então?

- A dor foi tão grande e profunda minha Nobre Senhora, que eu consegui romper com o cadeado e desta vez, mesmo tão envergonhado, consegui aproximar-me de ti e pedir ajuda.

- Bem, falou a nobre Senhora... Como você já sente o gostar, que é a chave para sair daqui, acho que posso ajudá-lo. Sinto que você é um artista, e como tal, pode vir a pintar paisagens naturais em telas áridas. Ouça a minha proposta: Providencio um campo  onde você poderá plantar inúmeras árvores, e também apreciar os pássaros que voam no céu. O que você acha?

Acho que a ideia não é ruim minha Nobre Senhora.

- O campo é árido...

- Mas minha Nobre Senhora, as árvores não crescem neste campo árido  onde me encontro agora, por que então crescerão em outro?

- Porque você terá a chance de cuidar delas com o amor que brotará do seu coração, e este amor adubará o solo inculto.

- Minha Nobre Senhora, existe amor em meu coração?

- O amor existe em estado latente no coração de todos os homens. Ninguém vai ajudá-lo, seus únicos companheiros serão os pássaros do céu.

- Ninguém minha Nobre Senhora, ninguém?

- Como você tem dificuldade com as pessoas, é melhor que vá só, porém providencio uns vira latas para te acompanhar, além, é claro, dos pássaros do céu.

- Ah... então está bom assim...

- Bem... Além de ninguém ajudá-lo, alguns vão atrapalhá-lo, dificultando o seu trabalho de cuidar do campo.

- É mesmo minha minha Nobre Senhora?

- Sim... Você conhecerá da indiferença e do descaso dos outros; tentarão queimar o seu campo, muitos comerão do fruto de suas árvores sem jamais estenderem a mão para ajudá-lo, muitos furtarão suas mudas, outros jogarão entulho nesta área que será tão cara ao seu coração...

- Mas por que precisa ser assim minha Nobre Senhora?

- Para que você possa desenvolver valores morais em sua alma, para que você possa crescer, para que você possa descobrir todas as mazelas humanas em sua própria natureza; para que você enfim, possa desenvolver a fé e a humildade, e sobretudo meu filho, para que você deixe de ficar olhando para o seu próprio umbigo, e possa finalmente aprender a amar a todos os seus semelhantes.

- Tanta adversidade assim minha Nobre Senhora?

- Assim como as sementes brotam da terra, o amor no coração dos homens brotam muitas vezes das dificuldades da vida.

- Minha Nobre Senhora, que recursos eu terei para cuidar deste campo?

- Quase nada. Providenciarei ferramentas, e as sementes você coletará pelos caminhos por onde passar. Você mesmo cuidará de cada muda, desde o nascimento até o plantio, e estas  jamais serão compradas ou comercializadas. Você poderá doar destas mudas para as pessoas que vierem a pedi-las, porém, jamais poderá vender nenhuma delas, pois as coisas do divino jamais podem ser transformadas em objetos de comércio. Aceita meu filho?

- Eu aceito mesmo assim minha nobre senhora, mas...

- Mas o que?

- E se eu fraquejar minha Nobre Senhora?

- Quando você sentir dificuldades, observe os pássaros do céu, seus futuros amigos, observe também as árvores crescendo no campo, suas amigas vindouras, tudo isto vai fortalece-lo, e persistindo ainda a dúvida, olhe para a imensidão do céu, que nesta hora o céu te ajudará...

- Mas o céu é tão longe minha Nobre Senhora...

- Em caso de emergência, suba de vez em quando nas árvores que você plantará, mas só em caso de emergência. 

- Desta forma então eu ficarei mais perto do céu?

- Não, mas o contato com as árvores nas alturas vai embalar o seu coração, trazendo um pouco de paz para você.

O Homem olhou então sem medo para os olhos daquela Nobre Senhora, e o seu olhar era de um azul profundo, um azul que traduzia uma imensa paz, um olhar de mãe, aquilo era como um céu, um céu de estrelas na travessia de uma escura noite... Cansado de todas as suas misérias íntimas, chorou, e finalmente adormeceu.

Naquela manhã o Agricultor acordou cedo, era já o final do verão, e havia ainda muitas mudas no viveiro que deveriam ser plantadas antes do fim da estação. Chegando no campo, percebeu que as "formicas brasiliensis" haviam atacado por aqueles dias. Havia uma árvore soterrada no meio de entulhos, e outras pisoteadas. Aquelas "formicas brasiliensis" estavam por toda parte, muitas vezes furtavam as mudas, em outras ocasiões enchiam as mangueiras de pedradas e pauladas a fim de derrubarem os frutos, jogavam também lixo naquele local que ele tanto amava, aquilo era quase uma praga, tal qual as formigas saúvas, que também davam muito, muito trabalho. 

Ele não ligava muito para aquelas "formicas brasiliensis", estava já acostumado com a indiferença geral de todos eles, - sagrada indiferença, - porém, quando a indiferença transformava-se em vandalismo e depredação, nesta hora o Agricultor ficava muito, muito bravo, e lá no fundo de sua alma, mandava todas aquelas "formicas brasiliensis" para o quinto dos infernos. 

Ficou muito tempo socorrendo a árvore soterrada pelas "formicas brasiliensis", observando em um canto as novas mudas aguardando o plantio, e lá no céu o astro rei esquentando o dia a cada minuto, sua cabeça já estava quente a muito tempo. 

Cansado e sentindo mesmo um pouco de desânimo o Agricultor foi aos poucos recuperando o seu equilíbrio e suas forças, olhou para as mudas nos saquinhos cheio de ternura, - elas precisavam dele - foi notando ao redor as árvores em franco crescimento, o campo tão árido e abandonado estava ficando bastante bonito, apesar dos pesares valia mesmo a pena continuar. 

Depois do socorro da árvore e do plantio daquelas mudas, o Agricultor deixou as ferramentas em um canto e saiu caminhando pelo bosque observando o ninho dos passarinhos e ouvindo o mais variado dos cantos, uma maravilha. Chegando em uma clareira dentro da mata olhou para cima, além das copas das árvores, e observou lá no alto um lindo céu azulado, e olhando para aquele céu tão bonito seu coração finalmente aquietou-se de vez, e apesar da luminosidade intensa do dia, o Agricultor olhava para aquele céu tão longínquo e observava lá um olhar, um olhar de estrelas...














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