Insano Por Um Dia

Todos já sabem mas não custa nada dizer que era domingo, e era de manhã, e o Agricultor estava obviamente plantando suas árvores pelos caminhos da vida. Muitos passaram por ali naquele dia, alguns observaram o Agricultor em sua lida, outros seguiram indiferentes, e a vida, naturalmente seguia o seu curso também.

-Agricultor, você está sempre plantando suas árvores solitariamente, falou o menino que passava. Não sente solidão?
- Solidão menino, é quando não consigo estar só comigo mesmo.

O Agricultor gostava muito daquele menino curioso que sempre passava por ali, porém, naquele dia, além do menino, curiosamente, alguns outros vieram conversar com ele também, algo incomum, quem sabe alguma convergência astrológica, ou  finalmente o início da era de aquários, ou outra coisa qualquer, o fato, é que naquele dia os indiferentes de todos os dias começaram a falar.

- Agricultor, muito bonito o que o Senhor faz. Ah se todo mundo fizesse isto também, o mundo todo seria a mais completa maravilha. Falou o primeiro indiferente.

- Estou precisando de ajuda hoje, terei que voltar para casa um pouquinho mais cedo, não gostaria de me ajudar aqui com algumas mudas? 

- Infelizmente não Agricultor, hoje estou cheio de coisas para fazer, um dia, quem sabe? Agricultor, Agricultor... se todo mundo fizesse o que o você faz, que maravilha seria, haveriam milhões e milhões de árvores mundo afora...

Seguiu adiante aquele moço, o Agricultor voltou ao seu trabalho, mas em vão, logo em seguida apareceu o segundo indiferente, e ele precisou ouvir mais uma vez.

- Agricultor, estou muito, muito preocupado mesmo com o desmatamento da floresta amazônica. Acho tudo aquilo uma lástima total, muitas vezes perco noites de sono de tanta preocupação.

- Sim, sim... Que tal então, já que a Amazônia é tão longe, me ajudar aqui no dia de hoje. Tenho algumas dezenas de árvores para plantar nesta manhã, e o sol já vai alto.

- Infelizmente agora não posso agricultor, estou aguardando chegar um caminhão de tábuas de mogno que acabei de adquirir para a reforma do assoalho de minha casa. Madeira de primeira qualidade, veio de longe, de muito longe, lá do norte, lá da floresta distante, madeira de lei.

O homem seguiu o seu caminho, o Agricultor ia voltando à lida solitariamente, quando, surpreendentemente, um terceiro indiferente apareceu puxando conversa, falando sobre as árvores, sobre a beleza de tudo aquilo, falando, falando...

- Muito calor Agricultor, uma coisa de louco. Percebo que a cada ano que passa o tempo fica mais quente.

- Bastante calor, é verdade, mas as árvores podem minimizar um pouco estas elevadas temperaturas.

- Ando muito preocupado com o aquecimento global Agricultor, muito preocupado...

- Isto é muito serio meu Senhor. Poderia me ajudar aqui com algumas árvores? 

- Me perdoe agricultor, estou de saída agora, acabei de comprar um gerador poderoso, movido a óleo diesel, e pretendo utilizá-lo em minha casa a fim de alimentar o novo sistema de ar condicionado central, coisa fina Agricultor, coisa de primeira. Quando tiver um tempinho, passe lá para se refrescar um pouco também. Um abraço então...

O homem desceu rua abaixo, e o Agricultor tentou voltar para  o seu labor, tudo aquilo era muito insano, porém, antes mesmo de pegar na sua enxada, apareceu, por incrível que possa aparecer o quarto indiferente....

- Bom dia Senhor... Passo por aqui a alguns anos, e sempre observo o seu trabalho, e hoje despertou-me uma profunda curiosidade. Observo sua presença por aqui, sempre com botas, calça comprida e perneiras. O Senhor por acaso é caçador de cobras?

Era muita maluquice para um dia só, onde já se viu, caçador de cobras... Então o Agricultor largou sua ferramenta de lado e resolveu então alistar-se no clube dos insanos também, porteira que passa um boi passa uma boiada...

- Claro, claro...

- A propósito, qual o seu nome?

- Os Amigos me chamam de Machado.

- Ah... Então o Senhor não caça cobras,  o Senhor é lenhador?

- Não... O Senhor não compreendeu... Sou Machado de Assis, o príncipe dos poetas brasileiros.

- Deve haver algum engano meu senhor, Machado de Assis morreu no século passado, a mais de cem anos.

- Não, não... Assim como Elvis, Machado não morreu, ou melhor, não morri. Na verdade me cansei das letras, dos contos, dos romances, da academia, da confeitaria colombo, e desde então me radiquei aqui por estas bandas, agora feliz e completamente anônimo.

O Agricultor, ou o Machado, como queiram,  pegou então sua cavadeira  e mostrou para o quarto indiferente.

- O que tenho em minhas mãos Senhor?

- Ah, é claro, é claro, uma cavadeira.

- Ledo engano meu Senhor, ledo engano... Em minhas mãos está uma pena, e agora vou escrever com ela, observe bem...

O Agricultor cavou a terra com sua pesada  cavadeira de ferro maciço, e lá no buraco plantou uma árvore, e em seguida tornou a falar com o quarto indiferente...

- O que eu fiz agora?

- Ora Agricultor, é claro, muito claro... O senhor pegou sua cavadeira, cavou um buraco e plantou uma árvore nele.

- Errou de novo cidadão. Peguei minha pena,  e como não tinha tinta e papel,   escrevi uma árvore no chão. E meu amigo, o que o Senhor observa no entorno?

- Esta é fácil, percebo um sem número de árvores, para todos os lados vejo árvores...

- O Senhor não consegue acertar nada mesmo. Não consegue perceber que é apenas um livro onde os textos, como seres vivos brotam do chão, formando lindos contos de amor, com o propósito, quem sabe de educar os que virão?

- Ah, exclamou aquele homem. O hospício é aqui, o hospício é aqui!

- Finalmente acertou, moço, e você, sem a menor sombra de dúvidas está falando com o doido chefe, falando com o Capitão-Mor, a serviço, sem dúvida nenhuma de sua majestade, Dom Pedro II. Deu então uma boa gargalhada, ofereceu ao moço sua pena pesada e metálica, prontamente não aceita, e saiu então escrevendo mais árvores  pelo chão, ou mesmo belos contos, como Machado de Assis, tão feliz na sua insanidade solitária.
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Comentários

  1. Como já tivemos um Machado, escritor famoso, acredito profundamente na literatura unica e atemporal do livro plantado que tem milhares de histórias entre troncos e copas emaranhadas desta floresta tão vasta, que chegou a atingir terras distantes e desmatadas do cerrado brasileiro.

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