O Espelho Estilhaçado

Dias de domingo para mim antes dos 12 Passos eram dias de muita dor, vazio e angústia. Na minha infância, era comum o meu pai viajar aos domingos, ele era caminhoneiro, e aquelas partidas no início da tarde enchiam o meu coração de tristeza. 

Minha codependencia tem muito a ver com a minha relação com o meu pai: Amor e ódio; chegadas e partidas; presença e saudade; medo e confiança; respeito e desprezo; guerra e paz... O medo que eu sinto na vida, um medo aterrador, é o medo dele, ou o medo de ser rejeitado e não ser amado por ele. 

Constato que desejava um pai mais amoroso e mais amigo, constato que queria mais afeto, mais apoio, mais atenção, confesso que gostaria muito de ter sido amigo do meu pai, mas, infelizmente, não foi assim que a banda tocou. 

Cresci então dividido entre um pai real e um pai idealizado, cresci desejando muito agradá-lo, a fim de receber dele afeto e compreensão. 

Demorei mais de 40 anos para descobrir que é impossível modificar o outro. Percebo agora de forma muito clara, que o fim da minha codependencia principia no instante em que eu conseguir aceitar o meu pai exatamente como ele é: Um ser humano. Mas ainda é difícil para mim aceitar duros olhares passados, é difícil para mim perdoar tanto autoritarismo, é difícil para mim aceitar belos discursos repletos de belas palavras e vazios de exemplo... 

Paradoxalmente, é também difícil para mim perceber a dignidade e a honestidade dele; é difícil para mim perceber nele o amor e uma grandiosa força para viver o momento presente, nu e cru, sem sonhos e ilusões. 

Se eu tenho tantas dificuldades com o meu pai, que é uma das portas do meu ingresso na vida, como eu não teria então dificuldades com a minha própria vida? Negar, rejeitar, censurar e criticar o meu pai, é o mesmo que negar, rejeitar, censurar e criticar a minha própria vida, agora eu sei. 

Na semana que passou, depois de um forte depoimento, no final da reunião uma companheira amorosamente falou comigo: Você não é aquela pessoa que falou na sala. Naquele momento eu descobri que passei muitas 24 horas nas reuniões falando inconscientemente do meu pai, e falando muito pouco de mim mesmo. Tive então a visão de um grande espelho, porém o reflexo que eu via ao me fitar no espelho não era o meu, era o reflexo do meu próprio pai. Naquele momento, ouvindo a companheira falando com tanto amor, eu percebi que o espelho ficou totalmente estilhaçado, tal qual o parabrisa de um automóvel após um impacto.

Acredito piamente que o Poder Superior atuou naquele instante, ajudando-me a fitar tão somente o meu próprio reflexo no grande espelho da vida. 

Comecei escrevendo que hoje era um domingo... Acordei muito cedo, antes das seis, e fui para o campo plantar árvores, e fiz isto com todo o amor do meu coração. 

Papai também acordava muito cedo, e com todo o amor e alegria do mundo, ligava o motor do caminhão, e saía dirigindo pelas estradas, a fim de ganhar o seu pão. 

No fundo, no fundo, acho que temos muito em comum, no fundo, no fundo, acho que o que nos une realmente é o amor, e não a minha ilusória codependencia.

No fundo, no fundo, acho que o reflexo no espelho deve mesmo ser um belíssimo reflexo de nós dois, ou quem sabe, o reflexo único de um Poder Superior conforme eu consigo conceber.

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