A Lanterna Interior
Eram mais de vinte e três horas, o Moço das Letras apagou as luzes de sua casa; estava na sua hora de dormir.
- Vamos acender a luz Moço das Letras, vamos acender a luz...
- Criança... você por aqui a esta hora. Já deveria estar dormindo. Você tem medo do escuro?
- Quero contar uma história para você.
- Melhor deixar para amanhã, não consigo escrever no escuro - falou sorrindo o Moço das Letras.
- Você consegue ouvir no escuro? - Perguntou a Criança.
- Sim, claro que consigo.
- Pois então ouça, mas por favor, não durma até que eu termine a narrativa.
O Moço das Letras sabia que seria inútil insistir com a Criança; para abreviar a situação - estava cansado -, concordou então em ouvir a história - o que não tem remédio, remediado está. A Criança então, ali ao seu lado, na escuridão do quarto, começou a contar a história para ele...
"Era uma vez, lá no Reino do Concreto, um Homem que desejava muito viver em si mesmo a santidade de alguns grandes personagens, que ele havia encontrado em livros sacros e históricos. Aquele Homem achava encantador aquelas figuras iluminadas, e desejava mesmo ser um iluminado também.
A necessidade da iluminação era grande, em função de uma profunda angústia que assolava constantemente o seu coração, bem como, por sentir em si mesmo um certo sentimento de escuridão total, como se ele estivesse andando eternamente por uma longa noite escura, muito escura.
No seu profundo desejo de luz, aquele Homem leu e releu diversos livros de seus heróis iluminados, na esperança de que, através do enriquecimento de sua mente, com toda aquela sabedoria exterior, pudesse finalmente acender a sua própria luz interior.
Tudo em vão... leu dezenas de livros, mas nada adiantou. Quando achava que já estava suficientemente iluminado, uma pequena contrariedade, ou uma dificuldade qualquer do dia a dia o levava novamente para o seu permanente estado de escuridão pessoal.
Aquele Homem tinha certeza que o caminho era aquele; achava mesmo que, por tanta erudição, depois de tantos livros lidos, já era mesmo merecedor de uma visão - transcendental ou sobrenatural -, de um daqueles seus heróis do espírito, tão cheios de luz própria.
Até que, finalmente, depois de muitos anos, muita leitura, muita amargura, muita angústia, muita dúvida, ele finalmente teve a tão sonhada visão espiritual. Na sua histórica e inesquecível visão, ele não viu nenhum de seus grandes heróis; viu somente o seu próprio demônio interior, um homem velho e vazio dentro de si mesmo, um homem escuro, opaco e carente de luz; um homem fechado em si mesmo, um grande analfabeto espiritual, um inquilino sem luz própria, à procura da luz dos outros, desejando ardentemente a iluminação através da luz exterior, da luz de terceiros, - dura e reveladora visão.
Daquele dia em diante, com aquela visão às avessas, aquele Homem começou finalmente a sua própria iluminação interior, buscando compreender e aceitar aquele ser tão carente dentro dele mesmo, aquele ser tão desprovido de luz própria, aquele ser tão sofrido e abandonado por tanto tempo; foi então, pouco a pouco descobrindo que, quanto mais cuidava daquele seu próprio indigente interior, mais e mais se auto iluminava.
Entendeu enfim que, seus grandes heróis conseguiram - todos eles - a iluminação pessoal através de grandes esforços, coragem e muita, muita busca interior, e agora, transformando sua diminuta luz recentemente descoberta dentro de si mesmo, fez dela uma lanterna, e a partir daí começou a andar cotidianamente através da noite escura de sua própria existência interior, vasculhando cada escaninho de sua alma, procurando sinceramente iluminar todos os seus porões mentais, ou ainda, o seu próprio e tão sofrido demônio interior. Que escuridão Moço das Letras, que escuridão..."
Após alguns instantes de silêncio o Moço das Letras indagou...
- Terminou a História Criança?
Não obteve nenhuma resposta. Levantou-se e acendeu a luz do quarto; a Criança estava deitada no cantinho da cama, havia adormecido.
Apagou novamente a luz e voltou para a cama, e nas suas reflexões, antes de finalmente dormir, percebeu que aquela lanterna interior narrada na história, em algum momento, dentro de um de seus escaninhos mais profundos, havia revelado e resgatado aquela Criança tão amada, aquela Criança tão sua, que agora, na escuridão da noite de Botafogo, ao seu lado, serenamente, dormia um sono da mais profunda confiança, um sono da mais radiante luz.
Acender a luz a fim de ascender a alma... Foi este o seu último pensamento antes de finalmente dormir em paz.
Acender a luz a fim de ascender a alma... Foi este o seu último pensamento antes de finalmente dormir em paz.
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