Os Viajantes da Vida

O trem seguia na sua marcha constante rumo à Barra Mansa, João, o lavrador, estava sentado no seu banco admirando a paisagem, confiante na vida... Estava deixando para trás a lavoura, iria para a usina em construção no interior do estado do Rio de Janeiro, lá onde o Paraíba do Sul fazia, segundo diziam, uma volta redonda; ele era mais um entre tantos outros arigós. A noite ia alta, o trem cruzava agora a serra do Caparaó, - como João amava aquela serra - olhou para o céu e observou lá uma belíssima lua cheia, um encanto, e com aquela brilhante esfera suspensa no céu ficou a pensar no seu filho, que estava tão longe, lá na capital federal servindo ao exército. 


João estava quase dormindo, porém, antes de entregar-se aos braços de Morfeu, ouviu dela, a lua, a seguinte revelação:


- Lavrador, seu filho será um viajante! 

A serra amada foi ficando para trás, e João no seu cansaço adormeceu, e o seu sono, o sono dos justos, era um sono de alegria e paz, e então João sonhou com as andorinhas que viajavam todos os anos lá para as frias terras do norte, João amava as andorinhas do céu.

Segunda-feira de madrugada, trinta anos depois. O caminhoneiro estava pronto para sair, estava escuro ainda. O menino acordava cedo para, juntamente com a sua mãe despedir-se do pai, e quando o caminhão fazia a curva e perdia-se no horizonte, ele ficava triste com aquela partida e pensava... "Um dia vou crescer e estarei sempre por perto de minha casa, não terei que constantemente viajar, ficando longe daqueles que amo, quando crescer não serei um viajante como o meu pai, dói para quem vai e dói para quem fica, positivamente não serei um viajante." Lá na sua casinha, Camborde, o vira lata do caminhoneiro ficava triste também.

Começava a amanhecer, lá no leste o sol, aquele que tudo sabe, surgia na linha do horizonte, e a manhã era de um alaranjado maravilhoso, e a carreta, sob a batuta do Sebastião seguia firme rumo ao Rio. 

- Caminhoneiro, filho de lavrador de café, falou o sol: Seu filho será um viajante também!

O Caminhoneiro ouviu, e lá do alto da Serra das Araras avistou ao longe a baixada fluminense, um mar de laranjeiras, e mais além outro imenso mar,  o atlântico, aquilo era uma visão extraordinária. Talvez pela visão, ou quem sabe pela anunciação do astro rei, o Caminhoneiro abriu o seu mais profundo sorriso de alegria e gratidão, pisou no acelerador e seguiu adiante, rumo ao leste, no seu caminhão vermelho.

Domingo à tarde, quarenta anos depois, o Agricultor Urbano arruma sua mala, - rotina que se repete a mais de três décadas - despede-se da mulher e dos filhos e sai, seu coração está dividido, coração de menino, ele aceita aquela situação, a vira lata desconsolada, - tal qual o cachorro do caminhoneiro no passado - fica ali no portão, com o olhar triste, perdido e distante, observando seu dono desaparecer na linha do horizonte, sua mulher e seus filhos tem os olhos úmidos...

Começa a escurecer, o sol vai desaparecendo no oeste, no céu Vênus começa a dar o tom do seu brilho, e lá do alto da Serra das Araras, lá ao longe, o Agricultor avista as luzes da cidade maravilhosa, - as luzes chegam sempre primeiro - e pensa no seu filho - aquele que recebeu o nome do bisavó paterno, o lavrador - que lá nasceu e que neste momento está tão longe, lá pelo Norte da América, além dos Estados Unidos, lá na terra onde vivem os ursos e os salmões, e o Agricultor Urbano observando o planeta brilhando no céu ouve dele a anunciação... 

- Seu filho calçará botas de sete léguas e será um viajante também!

Talvez pelo prazer de dirigir, ou pela beleza de Vênus ou da vida, ou mesmo pela anunciação, o Agricultor Urbano abriu um sorriso de contentamento, e feliz da vida reduziu da quinta para a quarta marcha, e começou a descer com muita cautela a sinuosa serra no seu automóvel, rumo à cidade que ele tanto amava.

Enquanto descia rumo ao litoral, sob a luz do crepúsculo, recordou-se das viagens de seu velho pai, - um pioneiro das rodovias brasileiras - e percebeu então que naqueles dias distantes, havia assistido antecipadamente ao filme de sua própria existência, e provavelmente o filme da vida do filho também, e descobriu então que não são os homens quem determinam se serão ou não viajantes, não são os homens... Os viajantes são eleitos pelos astros celestes que brilham no céu.

Dez anos se passaram. Começava a anoitecer, o avião sobrevoava agora a floresta amazônica, lá embaixo o menino observava uma infinidade de árvores, um tapete verde que perdia-se na linha do horizonte, dali a pouco menos de uma hora estaria fora dos limites territoriais do Brasil, sempre seguindo para o norte, voando - como uma andorinha - em direção ao Canadá.

Muitas horas de voo depois, já em território norte americano, lá ao longe o menino observou uma estrela muito brilhante, estava no hemisfério norte, era a estrela polar, e o bisneto do lavrador ali, sobre a imensidão do Atlântico, milhas e milhas distantes de sua terra natal, a três mil metros de altura, cheio de emoção, no seu trem voador ouviu dela, a anunciação:

- João, menino de Sete Léguas, seu filho...

A América do Sul já havia ficado para trás, e João no seu cansaço adormeceu, e o seu sono, o sono dos justos, era um sono de alegria e paz; e enquanto dormia sonhava com um trem serpenteando uma linda serra cheia de árvores e riachos, conduzindo entre outros, um lavrador mulato de mãos calejadas e de uma simpatia infinita, adormecido em um dos bancos do vagão, sonhando com as andorinhas que voavam para o norte.

Coisas de avós, pais, filhos e netos; coisas de menino, caminhoneiros, vira latas, andorinhas e astros; coisas de gente e viajantes... viajantes da vida.




















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