A Casa do Carrilhão

O menino chega ao portão, abre e entra, segue pela calçada reta que leva à porta, no meio do caminho o coqueiro, o quintal está ensolarado, lá no canto dorme Joli, o vira lata, abre a porta e entra; a casa é simples, casa de tios. Na sala e no quarto à esquerda um piso todo em tábua corrida, uma maravilha, na sala sofá e televisão, outra maravilha, e na parede frontal à porta um carrilhão marcando de forma serena o passar do tempo, outra maravilha ainda.

Passa pela sala e chega na copa com piso vermelho e brilhante, lá, uma mesa, à direita uma geladeira branca e em cima dela um pinguim, outra maravilha. A janela basculante está aberta, e o sol sem cerimônia entra e ilumina todo o ambiente. O menino segue, desce dois degraus da escada e chega na cozinha, abre a porta e avista o quintal, o abacateiro que produz em abundância no outono, muitas bananeiras, o poço, o varal de roupas e lá nos fundos o brejo. Na sala o carrilhão marca o compasso do tempo e toca...

O carrilhão toca dezoito horas, no quarto à esquerda da sala esta a menina, a Preta, a cama está cheia de brinquedos e a casa está cheia de visitas, o que teria acontecido com a Preta?

O ano é 1968, não toque sua musica hoje carrilhão, por favor não toque, hoje não, hoje não... Mas o carrilhão não ouve o menino lá na cozinha, precisa cumprir sua missão, impassível precisa controlar o tempo e a vida, não pode parar,  e neste dia ele toca tão triste, ele já sabia, tudo sabia o carrilhão, neste funesto dia o avô do menino, o pai da tia, partiu e nunca mais voltou. 

O carrilhão marca vinte horas, a data é dezessete de junho de 1970, na sala, sentado no sofá com sua irmã mais velha, o menino assiste em preto e branco a um jogo da copa do mundo, uma quarta feira, é gol do Brasil, Clodoaldo empata, jogo difícil contra o Uruguai, o menino quer gritar de alegria, foi gol, foi gol meu Deus, foi gol tia, foi gol, gol do Brasil....
- Não grita menino, seu tio está dormindo, hoje é dia de turno na usina, diz a tia.

Domingo de 1970, dezesseis horas, uma alegria geral, o carrilhão toca a sua música, ele está feliz também, o Brasil ganhou a copa, a tarde é clara e ensolarada, muitos fogos, o Joli corre assustado e se esconde em um canto, logo ali na frente o boteco do Seu Novais está lotado, muitos comemoram a vitória bebendo cerveja e cachaça, o Brasil é tri, o Brasil é tri, anuncia para todos o carrilhão...

Dezenove horas de uma terça-feira, marca o carrilhão, lá vem chegando a tia rua acima, está escuro, deve ser inverno então, ou outono ainda, na bolsa pirulitos coloridos comprados nas lojas americanas, brilham os olhos do menino que degusta aquilo com encanto, que maravilha aqueles pirulitos, que doçura aquela tia.

O carrilhão tem o mais absoluto controle do tempo, nada foge ao seu toque, marca agora doze horas, o menino come com os primos macarrão vermelhinho e toma refresco sabor groselha, em um copo com uma pedra de gelo lá da geladeira do pinguim, coisas da casa da tia, coisas coloridas e bonitas, coisas maravilhosas...

Sábado, o carrilhão anuncia que são quinze horas, a casa está alegre, na vitrola do tio toca um disco do Johnny Mathis, o tio gosta de música, possui um grande número de discos de vinil, e o menino gosta de ouvir aquilo; agora toca Roberto Carlos, e depois os verdes campos do lugar com o Agnaldo, - como gosta das músicas do Agnaldo o tio, - em seguida a voz inconfundível do Sinatra e um pouco mais além Altemar Dutra canta sentimental, sentimental de mais... Tudo isto em trinta e três rotações, uma maravilha.

Segunda-feira, meio dia, e lá de sua casa o menino ouve o canto do carrilhão anunciando que está na hora de ir para a escola; dirige-se então ao ponto e no caminho encontra o tio da casa do pinguim e dos discos, e como presente ganha uma carona no fusca, e o tio na pista larga e longa acelera e mostra o velocímetro, oitenta quilômetros por hora, oitenta quilômetros... mais rápido que o lotação, pensava o menino assustado com tanta velocidade.

O menino sai da cozinha, passa pela copa e pela sala, abre a porta, despede-se do Joli, passa pelo coqueiro e segue em frente, vida à dentro, chegou a hora de amadurecer e crescer, anuncia para ele o carrilhão na parede da sala, e diz ainda mais... "Um dia revelarei algo maravilhoso para você menino".

Cinquenta anos depois o menino volta, passa pela rua e observa que a casa continua lá, o coqueiro não, habitada agora por outros, ele não pode entrar, são estranhos, não são os tios, aproxima-se do portão e aguça o ouvido na esperança de ouvir o carrilhão, quem sabe, quem sabe...

O carrilhão toca, o menino escuta com nitidez, e sente uma profunda saudade... Ah, que maravilha, ele ouve agora na vitrola do tio  "Romeo and Juliet" na voz do Johnny Mathis, ele ouve...

Entramos agora em controvérsias. Estaria mesmo o menino ouvindo tudo aquilo, ou quem sabe, estaria escutando somente as batidas de seu próprio coração? Para este questionamento, somente aquele amado carrilhão, daquela amada casa dos amados tios, o Senhor do tempo, da vida e da morte, aquele que tudo sabe e controla tem a resposta, somente ele... refletiu o menino. 

A revelação do carrilhão foi cumprida, através da saudade o menino percebeu com absoluta clareza seu infinito amor por aqueles tios e primos, por aquela casa, por aqueles tempos, e sentiu em si a enormidade desta emoção, uma grandeza infinita, a maravilha das maravilhas.









Comentários

  1. Oi primo,que gostoso ler esse texto e ao poucos voltando ao passado, nosso cachorro, que saudades,que tempo bom. Somos parecidos,adoro relembrar nosso passado,afinal, apesar das dificuldades,foram momentos felizes! Obrigada primo!

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    1. Bom dia querida. Fico feliz, se possível, leia para a tia.

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    2. Bom dia querida. Fico feliz, se possível, leia para a tia.

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