Botafogo, Estação Terminal

Diziam que além de Botafogo havia um escuro túnel, e o homem preso na estação trazia em si o mais profundo medo, o medo de atravessar  aquele túnel... 
Ele estava cansado, muito cansado, cansado de andar por todas aquelas estações ao longo de tantos anos. Ele havia deixado de acreditar nos trens, havia deixado de acreditar naquele ir e vir, havia deixado de acreditar na vida, havia sobretudo deixado de acreditar em si mesmo, nada mais fazia sentido. E dia após dia, parado naquela estação, para ele terminal, a do metrô de Botafogo, ele sempre esperava pelo próximo trem a fim de voltar, e jurava de pés juntos que embarcaria, porém... Imaginou todos os trens possíveis, sempre o próximo trem, sempre um trem com algum traço especial, e todos estes trens passaram, e ele paralisado na estação, queria embarcar mas não conseguia, estava preso, preso no tempo, preso na vida, preso na estação, preso em si mesmo, vivendo no seu vazio, no seu cárcere pessoal, cercado pelo medo do túnel escuro que viria depois, na saída daquela estação, e ele temia demais aquele túnel. Mas ele não conseguia embarcar nos trens, não conseguia colocar-se em movimento, uma força invisível o detinha, ele já não mais poderia voltar, já conhecia todas as estação anteriores, ao longo de anos ele transitou muitas vezes por todas elas, Catete, Flamengo, Largo do Machado, Glória, Carioca, Cinelândia, Central, Triagem, Uruguaiana, Estácio, Praça Onze e muitas outras, e agora ali, preso em Botafogo, sem chão, sem ação, completamente desprovido da alegria do viver, como uma chama apagada, como um sol encoberto por densas nuvens, como uma noite sem luar, um navio sem farol, uma criança sem a mãe, parado, sem conseguir sair. Meninos que ele vira embarcar agora já eram adultos e seguiam nas composições, e como o trem, a vida mantinha o seu curso, e ele preso, vivendo como uma toupeira em sua toca subterrânea, com medo de sair e seguir adiante... E o trem passava, era carnaval, e as pessoas brincavam alegres, e ele via o vagão e não entrava, não partilhava da alegria com os demais, e lá vinha o trem dos homens de negócios, e ele não embarcava, não discutia suas idéias, estava preso na estação, preso no passado, preso no futuro, ausente do presente, deixando passar aquele trem que vinha chegando, bem como todos os demais que viriam também. Finalmente, como o fim de um ciclo, ou ainda o fim do seu inverno ou inferno pessoal, depois de muitos anos naquele estado de paralisia mental e emocional,  um dia ele percebeu que a estação estava profundamente vazia e então ele descobriu o vazio e a solidão em si, e o vazio era imenso, e a imensidão do vazio despertou nele um medo colossal, medo de perder-se para sempre naquela estação, naquele nada, medo de morrer sem jamais ter vivido, e sobretudo medo de perder-se para sempre no seu próprio mundo interior, sua dor era tanta e tão profunda, seu desespero era tão real, que movido por este imenso medo e pelo seu sofrimento, movido pela total impossibilidade de voltar, não tendo mais nenhuma alternativa, ele finalmente adquiriu coragem, levantou-se e  dirigiu-se à saída da estação,  e agora de forma determinada começou a caminhar em direção ao seu maior temor, o túnel escuro, e mesmo sentindo em si a companhia do seu eterno medo, ele foi e viu sob o morro da Babilônia a entrada do túnel, e enfrentando ainda o seu maior inimigo, ou quem sabe, a sua maior ilusão, entrou nele e o atravessou  e percebeu que ele não era afinal tão escuro, a escuridão era somente o fruto de sua mente doentia, e além do túnel, que maravilhoso,  tudo era novo, e então finalmente, depois de muitos e muitos anos vivendo ali naquela cidade ele viu o Rio, e o Rio era bonito e tinha o dom de ser sempre Janeiro, de fevereiro a dezembro, e o Rio tinha ainda um Jardim, não o da Babilônia, o  Botânico, e tinha também um Tom, um Tom cheio de sol, luz, melodias  e canções, e no Rio ele encontrou o mar e o mar era belo, infinitamente grande e amigo do Rio, e seguindo o mar por uma bela avenida ele deparou-se com aquela rua que preenchia todas os vazios, que extirpava para sempre toda a sua angústia, sua inércia e seu medo, aquela rua que nascia ali bem junto ao mar e seguia serenamente adiante, infinitamente, expressando para ele a mais significativa descoberta de sua vida, a rua Duvivier. Tendo finalmente chegado  até ali, ele passou desde então a viver todos os seus dias com a mais profunda alegria, deixando para trás e para sempre a sua antiga vida de toupeira subterrânea das vias metroviárias da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Agricultor e a Poetisa Ferida

O Marido, a Mulher, o Rio e a Calça

A Finitude das Redes e a Infinitude do Mar